DESPORTO E
EDUCAÇÃO
René Maheu [1]
Em Aberto, Brasflia, ano 1. n. 5, Abril, 1982
Faltando
dois dias para a abertura dos Vigésimos Jogos Olímpicos e neste momento em que
o mundo se prepara para viver durante duas semanas em união com as lutas
pacíficas de que Munique irá ser o maravilhoso teatro, sou profundamente
sensível à honra que me coube de tomar a palavra neste ilustre local da
Academia das Ciências da Baviera e no âmbito do Congresso Científico, que o comitê
organizador dos jogos teve a excelente idéia de convocar e de preparar tão
bem.
Sinto esta
honra principalmente como uma homenagem prestada à organização que sirvo, a
UNESCO, que teve sempre a consciência do valor humano do desporto. As generosas
palavras que acabamos de ouvir, proferidas pelas eminentes personalidades
alemãs que nos receberam, confirmam este sentimento. Asseguro-vos, Sr. Ministro,
Sr. Presidente, que essas palavras constituem um precioso incentivo para a
continuação dos nossos esforços a favor de uma integração cada vez maior do
desporto na educação e na cultura do homem moderno, para o desenvolvimento
harmonioso da pessoa e para a compreensão mútua dos povos.
Para essa
grande obra, é, na minha opinião, especialmente adequada a cooperação duma
organização intergovermental, como a UNESCO, com as organizações internacionais
não governamentais, como o Comitê Olímpico Internacional, de que tenho o prazer
de cumprimentar o novo Vice-Presidente, e o Conselho Internacional para a
Educação Física e Desporto, do qual saúdo
deferentemente o distinto Presidente, o mui ilustre Philip Noel-Baker, medalha
de prata olímpica, alto funcionário internacional da sociedade das nações,
homem de Estado e prêmio Nobel da Paz. É sob o signo dessa cooperação que hoje
desejo falar-vos sobre as relações entre desporto e educação.
As virtudes educativas do desporto não precisam de ser
demonstradas. E, diante dum auditório tão esclarecido, não é minha intenção determiná-las, mas sim, depois de as evocar brevemente, interrogar-me
sobre as razões que fazem com que elas não sejam exploradas tão sistemática e
completamente como poderiam e deveriam ser e procurar quais as principais
modificações, tanto na educação como no desporto, que é conveniente introduzir
nas concepções e práticas atuais para dar ao desporto o lugar que lhe compete
na formação completa do homem.
Acima de tudo, o desporto é um fator de equilíbrio no desenvolvimento geral da pessoa. Equilíbrio entre o
espírito e o corpo, entre a efetividade
e a energia, entre o indivíduo e o grupo. Numa
civilização essencialmente intelectualista e tecnológica que concentra a
excelência no cérebro e domina pela máquina, num tempo de éxtremismos em que
abundam as distorções de toda espécie, esse fator de equilíbrio, de plenitude e
de harmonia é particularmente salutar.
Por outro lado, o desporto é um jogo, isto é, uma atividade gratuita, cuja razão de ser e recompensa reside na
própria realização e que não comporta outras regras senão aquelas que ele
próprio estipula livremente. Neste aspecto é também um precioso corretivo para o utilitarismo estiolador da nossa época. Com
efeito, para além das invenções e o que
afirmamos é particularmente verdadeiro em relação ao espetáculo desportivo. É
verdade que o desporto, no seu aspecto de competição, aspecto que está
intimamente de acordo com o seu caráter essencial de prova, de medida e de esforço
de superação, constitui uma admirável matéria de espetáculos belos e
emocionantes. Com todo o direito, faz parte da cultura dramática moderna. Mas,
por outro lado, não se poderá negar que o desenvolvimento do espetáculo
desportivo desviou a atenção da realidade moral íntima do desporto a favor da
sua capacidade de divertimento. Divertimento é o que o desporto se tornou para
as multidões reduzidas ao papel de espectadores, a quem o rádio e a televisão
dispensam mesmo de uma ida ao estádio. Ora, o divertimento é o que há de mais
afastado da verdadeira vida. Também vemos uma parte da juventude
denunciar o desporto como um fator de alienação: a advertência
merece que se tome cautela.
São estas as principais características do
sucesso do desporto, embora o desviem da sua vocação educativa. Mas, com toda a
imparcialidade, é preciso reconhecer que, por seu lado, os sistemas educativos
não põem nenhum empenho em integrar o desporto nas suas estruturas e atividades.
Em primeiro lugar, como no tempo de Coubertin,
o desporto continua a chocar-se com o intelectualismo e com o utilitarismoque, mais do que nunca e em todo o mundo, dominam a educação estabelecida. Digo bem mais do que nunca pois se trata de uma
conseqüência da importância crescente da ciência e da tecnologia na nossa
civilização. E digo no mundo inteiro porque a procura do desenvolvimento, que
se tornou para as nações uma questão de vida ou morte, tende para a universalização
desta civilização científica e técnica.
A juventude abafa sob o domínio duma formação
demasiado estreita em que a prioridade concedida sistematicamente ao exercício
da inteligência e, nesta, às suas capacidades e aplicações mais utilitárias
deixa sem cultura as potencialidades sensibilidade física, da intuição afetiva,
do sentimento estético, da expressão lúdica ou de criação artística, de que
toda a gente é mais ou menos dotada, as únicas que permitem apreciar o sabor da
vida. Nos programas e nos horários da maior parte dos sistemas escolares, a
educação física e o desporto continuam a ser sacrificados às disciplinas da
inteligência, tal como sucede a tantas outras atividades educativas essenciais,
como a educação estética, a educação sexual, a educação cívica e a preparação
para a vida social. É assim que desde a escola se forma o homem unidimensional. E a
sociedade construída por ele à sua imagem não faz mais do que engrandecer e institucionalizar
a desumanidade infeliz e cruel.
No que diz
respeito aos educadores, enquanto que o ideal seria, como acontece em algumas
grammar schools inglesas, que este e aquele professor de disciplinas
intelectuais fossem também professores de jogos ao ar livre e iniciadores dum
determinado desporto, praticado pela sua contribuição para a formação integral
do aluno, pelo contrário, vemos os professores de educação física constituírem
no conjunto do corpo docente uma categoria à parte, dotada de qualificações
limitadas e de um estatuto inferior, desempenhando um papel apenas marginal
tanto na educação da maior parte dos jovens como na vida do estabelecimento.
É certo que, pelo contrário, muitas
universidades se especializam na excelência desportiva e procuram de
preferência assegurar o concurso dos melhores treinadores, pela outorga de
vantagens especiais, e a presença, entre os estudantes, dos atletas mais
dotados. Mas essa inversão da hierarquia dos valores e das disciplinas, que faz
dessas universidades viveiros de desportistas profissionais mais do que centros
de estudo, não modifica nada a segregação fundamental do plano intelectual e
físico que é propriamente o mal que importa remediar.
Finalmente,
podiam fazer-se as mesmas observações a propósito das instalações desportivas
nos estabelecimentos escolares e universitários. Embora se tenham realizado progressos
consideráveis em todos os países, à custa, deve dizer-se, de grandes
sacrifícios do Estado ou de coletividades privadas, no que se refere às
dotações financeiras de que se beneficia esse equipamento, no entanto, este
continua a ser raramente inteviado
na estrutura e na vida do conjunto da comunidade educativa, como nos modelos
excepcionais de Eton e de Rugby, de Oxford e de Camhridn. Ora, é necessário que
o campo de jogos, o ginásio, a sala de basquetebol ou de esgrima, a piscina e a
pista estejam em relação de simbiose com a sala de aula e de estudos, o
laboratório e a biblioteca, como o teatro-cinema e a sala de clube, de modo a
poder passar-se facilmente de um a outro destes universos, destas diversas
facetas de cada indivíduo, cuja síntese compõe a pessoa humana. E acabemos com
o hipócrita álibi do pátio de recreio, esse claustro sem
oração, prisão da inocência, onde se quebra tanto élan vital ou se despende inutilmente.
Perante essa
situação, de que, evidentemente, forcei a descrição para simplificar, impõe-se uma
reação no sentido da abertura recíproca e da interpenetração dos sistemas
educativo e desportivo. Creio que, por parte da educação, as circunstâncias se
apresentam favoráveis neste aspecto. Estou menos certo que aconteça o mesmo em
relação ao desporto. Mas, de qualquer modo, é certo que nada se fará se homens
responsáveis, que sejam também homens de visâo, capazes de inspiração
imaginativa e de conquistar a simpatia do público, especialmente das gerações
novas, nâo tomarem, de um e doutro lado, disposições resolutamente inovadoras.
É pensando nessa eventualidade, para a qual faço votos e para a qual estou
pronto, por minha parte, a comprometer-me com a energia e com a audiência de
que possa dispor, que quereria apresentar- vos algumas observações e reflexões
que tenho no coração.
Disse que,
pelo lado da educação, o momento era favorável. A primeira razâo é que em quase
todos os países predomina o sentimento, tanto por parte da opinião pública e
dos políticos como dos técnicos e dos especialistas, para nâo dizer dos
estudantes, que se impõem revisões e novas orientações nos sistemas educativos
atuais. Eu partilho esse sentimento. E a expressão "crise de
educação", ainda que se use a torto e a direito, nâo me mete medo. Creio
que está em gestação um novo modelo humano e penso que uma mutação é
necessária para pôr a humanidade em situação de resolver de maneira adequada,
pelo menos por algum tempo, os terríveis problemas postos pelos desequilíbrios,
pelas injustiças e pela aceleração incontrolada do seu próprio progresso. Isso
exigirá, seguramente, muitos esforços e tempo, visto que os problemas se põem
agora à escala do planeta e, dada a nova solidariedade que liga os diversos
focos de civilização no mundo, exigem soluções simultaneamente pluralistas e
coordenadas. Sem dúvida que será necessário o esforço de várias gerações para
franquear a barreira, tal como aconteceu no Ocidente, quando se passou do
modelo antiqo ao modelo cristão ou ainda do homem gótico ao homem clássico. Mas
parece-me que estamos desde já envolvidos nesse processo e, se, pela nossa
parte, nâo estamos destinados a ver o seu termo, podemos, no entanto, fazer
muito para facilitar aos nossos sucessores o caminho do êxito.
Neste aspecto, está a delimitar-se certo objetivo
e certo contributo. O objetivo é a realização do homem na sua
multidimensionalidade. O contributo é a educação permanente. Não é altura de
nos alargarmos sobre estas noções. Limitar-me-ei a dizer que inspiram desde
agora o conjunto da ação da UNESCO, em matéria de educação. Quero somente
assinalar em que é que elas oferecem novas possibilidades de integrar o
desporto na educação. A procura de um modelo educativo multidimensional — que
se não deve confundir com a multiplicidade, simultânea ou sucessiva, de opções
seletivas que se excluem mutuamente, nem com a acumulação de múltiplas
disciplinas levada até ao cansaço — é a retomada moderna do movimento humanista
que levou a educação aos seus maiores êxitos: os que deram ao homem os meios
de autodomínio e de realização harmoniosa. Nesta perspectiva, a educação consiste
menos na aquisição de conhecimentos e de técnicas, visando a uma particular
eficácia intelectual ou física, do que no desenvolvimento das atitudes e das
aptidões polivalentes que permitam uma realização autêntica da pessoa.
Trata-se essencialmente de "aprender a ser", segundo a bela
expressão que a Comissão Internacional da UNESCO sobre o desenvolvimento da
educação, presidida por Edgar Faure, deu como título ao seu relatório.
Um tal conceito de educação não poderá,
evidentemente, acomodar-se com a orientação estritamente intelectualista e
utilitária que caracteriza ainda a maior parte dos sistemas educativos, que eu
disse constituir um dos principais obstáculos à penetração
do desporto no meio educativo. Deve levar, num prazo mais ou menos breve, a
uma profunda transformação na economia dos programas escolares assim como ao
desenvolvimento progressivo do aluno e do estudante. Exige também um novo tipo
de relação, no seio do processo educativo, entre o educador e o educando, os
quais devem ser considerados ambos, apesar da diferença de funções, como
agentes de uma mesma procura de si e de outrem, para um enriquecimento
recíproco. E, entretanto, exige um novo tipo de educador, mais próximo do iniciador
do que do instrutor.
É impensável
que nesta profunda refundição da educação, a educação física e o desporto não
encontrem o seu verdadeiro lugar. Constituem elementos demasiado importantes do
equilíbrio e da plenitude da pessoa e oferecem à nova
pedagogia muitas possibilidades de animação ativa para serem negligenciados. É
necessário ainda, é certo, que aqueles que têm a seu cargo essa formação tomem
consciência do movimento de renovação educativa que se propaga através do mundo
e se elevem ao nível das circunstâncias. Chegou o momento de mostrarem, eles
também, que são mestres no sentido exato do termo, isto é, portadores de
mensagens e demonstradores de exemplos capazes de modelar a vida.
Falei de
educação permanente. E, com efeito, essa educação multidimensional, dedicada a
aprender a ser, não tem sentido e não pode mesmo concretizar-se a não ser no
âmbito de um esforço co-extensivo simultaneamente à totalidade da comunidade e
à duração da existência do indivíduo. Essa perspectiva é cada vez mais aceita e
acaba de se manifestar recentemente na terceira Conferência Internacional da
UNESCO sobre a Educação dos Adultos, em Tóquio.
Sem dúvida,
estamos ainda longe de assumirmos todas as implicações e mais ainda de realizar as condições da sua
aplicação efetiva. Mas, a partir de agora, compreende-se que se deverão dar
modificações radicais na organização do sistema educativo, no que se refere
especialmente às prioridades que regem a planificação dos esforços e a
repartição dos recursos, às estruturas governamentais e administrativas e,
finalmente, às próprias instalações educativas.
No que diz
respeito à repartição dos recursos, penso que se irá para um aumento da
percentagem atribuída à educação dos adultos em relação à dos jovens, que até
aqui reteve exclusivamente a atenção. E é a ocasião de lembrar que nada é mais
falso do que acreditar que o desporto é apanágio da primeira juventude, como se
tem acreditado muitas vezes por influência do prestígio da alta competição,
especialmente em algumas disciplinas. Jean Borotra, que tenho o prazer de ver
entre nós, constitui um prestigioso exemplo.
Quanto às
estruturas governamentais e administrativas, importa que os serviços
responsáveis pela juventude e desportos deixem de formar, como sucede em muitos
países, um sistema fechado, freqüentemente muito politizado, para se integrarem
abertamente quer no sistema educativo, a que chamarei estabelecido, isto é,
escolar ou universitário, quer no sistema de cultura e de comunicação,
subentendendo-se que um e outro, embora atualmente distintos, fazem parte de um
mesmo conjunto e que um dia será necessário realizar a unidade fundamental.
Quanto às
instalações educativas, põe-se sobretudo o problema da função e da organização
da universidade e da escola. A este propósito, declaro que não me incluo no
número daqueles que afirmam que essas instituições, preciosa herança
respectivamente do espírito mediterrânico e religioso da Idade Média muçulmana
e cristã e da idade industrial, fizeram o seu tempo e devem ser postas de lado.
Penso firmemente que devem ser conservadas, mas é claro que é necessário
reformá-las profundamente, abrindo-as para todos os aspectos, necessidades e
aspirações da sociedade moderna e integrando-as num sistema amplo e maleável
de educação total e permanente. Acima de tudo, é necessário que esses
estabelecimentos deixem de ser universos fechados à margem da
vida real — ghettos — como alguns dizem, nâo sem exagero. É isso
que está em vias de se realizar em relação à universidade,
é isso que se deve realizar também na escola primária e secundária.
É também indubitável
que essa transformação, que deverá fazer dos estabelecimentos escolares e
universitários centros de vida comunitária reunindo jovens e adultos,
misturando o estudo, a vida e o jogo numa simbiose de investigação e de
realização cultural, abrirá ao desporto novas possibilidades no seio da
educação. Finalmente, por-se-ã termo a uma absurda dualidade de sistemas que
muitas vezes se ignoram: por um lado, a educação física e o desporto escolar e
universitário, por outro, o desporto e as atividades ao ar livre. Poderia
fazer-se a economia de instalações desportivas dispendiosas que só funcionam
para uma parte da população durante uma parte do tempo, como esses campos de
jogos e essas piscinas que fecham no verão sob o pretexto de serem férias ou
esses imensos estádios que só abrem para o espetáculo no sábado ou no domingo.
Acabar-se-ã com os clubes em que os jovens encontram treinadores desejosos de performances, mas onde raramente encontram educadores
preocupados com o homem integral. Acima de tudo, acabar- se-ã com a
fragmentação da comunidade e da pessoa e com as frustrações e as rupturas de
equilíbrio que acompanham sempre aquilo que é incompleto. Saberá o desporto
aproveitar as ocasiões que assim se lhe oferecem para a profunda reforma da
educação que principia? Saberá, enfim, desempenhar plenamente a sua função na
formação individual e social do homem? Não estou tão certo disso como gostaria
de estar, porque, para isso, é necessário que também o desporto se reforme e não
menos profundamente, por duplo processo de retorno às fontes e de invenção
contínua. Permiti-me que indique algumas direções em que, na minha opinião, se
devia orientar prioritariamente essa reforma. Acima de tudo, importa que os
responsáveis pelo desporto, encarregados de organismos governamentais ou nâo
governamentais, concedam um lugar maior nas suas preocupações e objetivos, no
plano nacional e internacional, a tudo aquilo que eu inicialmente evoquei como
sendo a capacidade educativa do desporto, que é a sua verdadeira realidade
humana, e se preocupem menos com o espetáculo que, em si próprio, deveria
destinar-se a evidenciar um sentido moral, como o pretendia o fundador dos
Jogos Olímpicos modernos. O sucesso do espetáculo desportivo, a importância que
assumiu nos costumes infelizmente é muitas vezes explorada para fins alheios e
às vezes opostos ao desporto e que sâo outros tantos fatores de corrupção ou
de deformação: o mercantilismo, o chauvinismo, a politica. Chegou o tempo de
reagir e de reagir energicamente, se se quer conservar o espírito do desporto.
Chegou o tempo de escolher entre o circo romano e a palestra grega. Chegou o
tempo de escolher entre a exaltação do orgulho nacional e a da fraternidade
humana, entre aquilo que opõe os homens e aquilo que os une. É também
necessário que o desporto retorne à natureza. A excessiva procura de proezas
que exigem a realização de condições cada vez mais excepcionais, junto ao
desejo de rigor que caracteriza a alta competição, sobretudo em confrontos ou
em oposições internacionais, levou progressivamente a que o desporto
constituísse em um universo físico próprio, por assim dizer estanque, em
relação às contingências da verdadeira natureza e por isso anormal, na medida
em que se procura realizar a norma abstrata. Aí reside também uma grave
deformação, porque o princípio do desporto e a fonte das suas alegrias mais sâs
é a restituição do corpo à sua liberdade instrutiva e, portanto, à comunhão do
homem com a imensa natureza de que faz parte. Esse regresso à autenticidade e
ao à-vontade físico impõe-se nos nossos dias mais do que nunca, para compensar
o desequilíbrio crescente introduzido na nossa maneira de viver pelo
desenvolvimento da maquinizaçâo e pelas condições artificiais de existência que
predominam nos aglomerados urbanos. Na sua origem o movimento desportivo foi
principalmente uma evasão dos citadinos para o ar livre. O seu significado
profético era advertir a humanidade dos perigos da civilização industrial. Nâo
poderíamos esquecer esse aspecto altamente salutar do desporto, na medida em
que parece que esta civilização destrói e polui cada vez mais o ambiente
natural do homem. É necessário que o desporto nâo participe também no processo
de desnaturação que nos ameaça. Por fim, uma última observação. O desporto, que
se tornou fenômeno universal e é dotado de uma prestigiosa organização mundial,
como a organização olímpica, deve assumir as implicações desta universalidade.
Quero dizer com isto que deve reconhecer e refletir na sua estrutura e manter e
até desenvolver na sua ação a pluralidade das culturas que constitui a riqueza
do patrimônio moral da humanidade e pela qual se exprime a sua inesgotável
liberdade criadora. Para ascender ao plano universal, é necessário repudiar
resolutamente todo etnocentrismo cultural: é uma das finalidades essenciais da
UNESCO. Assim, não é pôr em causa o valor permanente dos desportos de origem
helénica ou anglo-saxônica observar que não são os únicos no mundo cujas
capacidades corporais e morais merecem ser valorizadas para fins educativos e
estéticos. Não sejamos nisso prisioneiros de tradições rígidas e abramo-nos
resolutamente à diversidade das possibilidades humanas. É paradoxal que os
povos dotados de um sentido inato da dança, conscientes ao mais alto grau das
virtudes catárticas e formadoras do jogo e em quem a cultura corporal se
associa intimamente à vida da comunidade, se limitem a imitar os desportos
doutras nações e precisamente num momento em que nestas se esboça um movimento
a favor da libertação das formas e dos ritmos de expressão física. Seria
lamentável que a introdução nesses povos de práticas desportivas estritamente
codificadas se fizesse em detrimento do seu próprio valor lúdico. Já não será
necessário que um desejo de prestígio internacional os incite a um esforço
excessivo corn o objetivo de produzir elites de alguns campeões a expensas da
progressão das massas. Assim, talvez não seja quimérico formular o voto que, no
âmbito ou ao lado de manifestações mundiais, como os Jogos Olímpicos, se
possam um dia organizar competições com uma regulamentação menos estrita do
que aquelas que conhecemos, onde se apresentam exercícios físicos e jogos
orginários no gênio de sociedades muito diversas. 0 mundo é uma imensa polifonia.
A festa universal da juventude, com que sonhava Pierre de Coubertin, deve ser
feita à imagem desta. A humanidade está numa fase de mutação profunda e rápida,
temos consciência disso. Procura às apalpadelas o seu caminho através de
destinos confusos, grandiosos e simultaneamente temíveis. A educação e o desporto
não poderiam constituir exceção a essa necessidade de transformação. Muito
longe de tentarem espacar-lhe, pelo contrário devem contribuir para a evolução
geral com toda a lucidez e com toda a generosidade quo andam liqadas à sua
vocação, procedendo, em primeiro lugar, às reformas que se impõem nos seus
domínios. Essa tarefa capital de renovação dos sistemas propriamente ditos e da
própria sociedade no seu ser global poderá ser feita tanto melhor, penso eu, se
desporto e educação trabalharem em conjunto, enriquecendo-se e reforçando-se mutuamente com as suas experiências e os seus
recursos. Tal é pelo menos o espírito com que a UNESCO encara esses problemas e
pede a colaboração de todas as organizações e de todas as pessoas de boa vontade
que partilham da sua fé no Homem e se dedicam, como ela, ao seu serviço.
[1]
Transcrito da Revista Brasileira de Educação Física.
Ano 5, n. 16, 1973. Diretor-Geral da UNESCO. Em Aberto, Brasília, ano 1. n. 5, Abril, 1982
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