terça-feira, 5 de maio de 2015

DESPORTO E EDUCAÇÃO

DESPORTO E EDUCAÇÃO

René Maheu [1]

Em Aberto, Brasflia, ano 1. n. 5, Abril, 1982

Faltando dois dias para a abertura dos Vigésimos Jogos Olímpicos e neste momento em que o mundo se prepara para viver durante duas se­manas em união com as lutas pacíficas de que Munique irá ser o mara­vilhoso teatro, sou profundamente sensível à honra que me coube de tomar a palavra neste ilustre local da Academia das Ciências da Baviera e no âmbito do Congresso Científico, que o comitê organizador dos jo­gos teve a excelente idéia de convocar e de preparar tão bem.
Sinto esta honra principalmente como uma homenagem prestada à or­ganização que sirvo, a UNESCO, que teve sempre a consciência do valor humano do desporto. As generosas palavras que acabamos de ouvir, pro­feridas pelas eminentes personalidades alemãs que nos receberam, con­firmam este sentimento. Asseguro-vos, Sr. Ministro, Sr. Presidente, que essas palavras constituem um precioso incentivo para a continuação dos nossos esforços a favor de uma integração cada vez maior do desporto na educação e na cultura do homem moderno, para o desenvolvimento harmonioso da pessoa e para a compreensão mútua dos povos.
Para essa grande obra, é, na minha opinião, especialmente adequada a cooperação duma organização intergovermental, como a UNESCO, com as organizações internacionais não governamentais, como o Comitê Olímpico Internacional, de que tenho o prazer de cumprimentar o novo Vice-Presidente, e o Conselho Internacional para a Educação Física e Desporto, do qual saúdo deferentemente o distinto Presidente, o mui ilustre Philip Noel-Baker, medalha de prata olímpica, alto funcionário internacional da sociedade das nações, homem de Estado e prêmio Nobel da Paz. É sob o signo dessa cooperação que hoje desejo falar-vos sobre as relações entre desporto e educação.
As virtudes educativas do desporto não precisam de ser demonstradas. E, diante dum auditório tão esclarecido, não é minha intenção determi­ná-las, mas sim, depois de as evocar brevemente, interrogar-me sobre as razões que fazem com que elas não sejam exploradas tão sistemática e completamente como poderiam e deveriam ser e procurar quais as principais modificações, tanto na educação como no desporto, que é conveniente introduzir nas concepções e práticas atuais para dar ao des­porto o lugar que lhe compete na formação completa do homem.
Acima de tudo, o desporto é um fator de equilíbrio no desenvolvimento geral da pessoa. Equilíbrio entre o espírito e o corpo, entre a efetivi­dade e a energia, entre o indivíduo e o grupo. Numa civilização essen­cialmente intelectualista e tecnológica que concentra a excelência no cérebro e domina pela máquina, num tempo de éxtremismos em que abundam as distorções de toda espécie, esse fator de equilíbrio, de ple­nitude e de harmonia é particularmente salutar.
Por outro lado, o desporto é um jogo, isto é, uma atividade gratuita, cuja razão de ser e recompensa reside na própria realização e que não comporta outras regras senão aquelas que ele próprio estipula livre­mente. Neste aspecto é também um precioso corretivo para o utilitaris­mo estiolador da nossa época. Com efeito, para além das invenções e o que afirmamos é particularmente verdadeiro em relação ao espetáculo desportivo. É verdade que o desporto, no seu aspecto de competição, aspecto que está intimamente de acordo com o seu caráter essencial de prova, de medida e de esforço de superação, constitui uma admirável matéria de espetáculos belos e emocionantes. Com todo o direito, faz parte da cultura dramática moderna. Mas, por outro lado, não se poderá negar que o desenvolvimento do espetáculo desportivo desviou a atenção da realidade moral íntima do desporto a favor da sua capacidade de di­vertimento. Divertimento é o que o desporto se tornou para as multi­dões reduzidas ao papel de espectadores, a quem o rádio e a televisão dispensam mesmo de uma ida ao estádio. Ora, o divertimento é o que há de mais afastado da          verdadeira      vida. Também vemos uma parte       da juventude denunciar o     desporto         como um fator de       alienação:       a advertência merece que se tome cautela.
São estas as principais características do sucesso do desporto, embora o desviem da sua vocação educativa. Mas, com toda a imparcialidade, é preciso reconhecer que, por seu lado, os sistemas educativos não põem nenhum empenho em integrar o desporto nas suas estruturas e ativida­des.
Em primeiro lugar, como no tempo de Coubertin, o desporto continua a chocar-se com o intelectualismo            e com o utilitarismoque, mais           do que nunca e em todo o mundo,    dominam a educação estabelecida. Digo bem mais do que nunca pois se trata de uma conseqüência da im­portância crescente da ciência e da tecnologia na nossa civilização. E digo no mundo inteiro porque a procura do desenvolvimento, que se tornou para as nações uma questão de vida ou morte, tende para a uni­versalização desta civilização científica e técnica.
A juventude abafa sob o domínio duma formação demasiado estreita em que a prioridade concedida sistematicamente ao exercício da inte­ligência e, nesta, às suas capacidades e aplicações mais utilitárias deixa sem cultura as potencialidades sensibilidade física, da intuição afeti­va, do sentimento estético, da expressão lúdica ou de criação artística, de que toda a gente é mais ou menos dotada, as únicas que permitem apreciar o sabor da vida. Nos programas e nos horários da maior parte dos sistemas escolares, a educação física e o desporto continuam a ser sacrificados às disciplinas da inteligência, tal como sucede a tantas outras atividades educativas essenciais, como a educação estética, a educa­ção sexual, a educação cívica e a preparação para a vida social. É assim que desde a escola se forma o homem unidimensional. E a sociedade construída por ele à sua imagem não faz mais do que engrandecer e ins­titucionalizar a desumanidade infeliz e cruel.
No que diz respeito aos educadores, enquanto que o ideal seria, como acontece em algumas grammar schools inglesas, que este e aquele pro­fessor de disciplinas intelectuais fossem também professores de jogos ao ar livre e iniciadores dum determinado desporto, praticado pela sua con­tribuição para a formação integral do aluno, pelo contrário, vemos os professores de educação física constituírem no conjunto do corpo do­cente uma categoria à parte, dotada de qualificações limitadas e de um estatuto inferior, desempenhando um papel apenas marginal tanto na educação da maior parte dos jovens como na vida do estabelecimento.
É certo que, pelo contrário, muitas universidades se especializam na excelência desportiva e procuram de preferência assegurar o concurso dos melhores treinadores, pela outorga de vantagens especiais, e a pre­sença, entre os estudantes, dos atletas mais dotados. Mas essa inversão da hierarquia dos valores e das disciplinas, que faz dessas universidades viveiros de desportistas profissionais mais do que centros de estudo, não modifica nada a segregação fundamental do plano intelectual e físico que é propriamente o mal que importa remediar.
Finalmente, podiam fazer-se as mesmas observações a propósito das ins­talações desportivas nos estabelecimentos escolares e universitários. Em­bora se tenham realizado progressos consideráveis em todos os países, à custa, deve dizer-se, de grandes sacrifícios do Estado ou de coletivi­dades privadas, no que se refere às dotações financeiras de que se bene­ficia esse equipamento, no entanto, este continua a ser raramente inteviado na estrutura e na vida do conjunto da comunidade educativa, como nos modelos excepcionais de Eton e de Rugby, de Oxford e de Camhridn. Ora, é necessário que o campo de jogos, o ginásio, a sala de basquetebol ou de esgrima, a piscina e a pista estejam em relação de simbiose com a sala de aula e de estudos, o laboratório e a biblioteca, como o teatro-cinema e a sala de clube, de modo a poder passar-se fa­cilmente de um a outro destes universos, destas diversas facetas de cada indivíduo, cuja síntese compõe a pessoa humana. E acabemos com o hipócrita álibi do pátio de recreio, esse claustro sem oração, prisão da inocência, onde se quebra tanto élan vital ou se despende inutilmente.
Perante essa situação, de que, evidentemente, forcei a descrição para simplificar, impõe-se uma reação no sentido da abertura recíproca e da interpenetração dos sistemas educativo e desportivo. Creio que, por parte da educação, as circunstâncias se apresentam favoráveis neste aspecto. Estou menos certo que aconteça o mesmo em relação ao desporto. Mas, de qualquer modo, é certo que nada se fará se homens responsáveis, que sejam também homens de visâo, capazes de inspiração imaginativa e de conquistar a simpatia do público, especialmente das gerações no­vas, nâo tomarem, de um e doutro lado, disposições resolutamente inovadoras. É pensando nessa eventualidade, para a qual faço votos e para a qual estou pronto, por minha parte, a comprometer-me com a energia e com a audiência de que possa dispor, que quereria apresentar- vos algumas observações e reflexões que tenho no coração.
Disse que, pelo lado da educação, o momento era favorável. A primeira razâo é que em quase todos os países predomina o sentimento, tanto por parte da opinião pública e dos políticos como dos técnicos e dos especialistas, para nâo dizer dos estudantes, que se impõem revisões e novas orientações nos sistemas educativos atuais. Eu partilho esse senti­mento. E a expressão "crise de educação", ainda que se use a torto e a direito, nâo me mete medo. Creio que está em gestação um novo mode­lo humano e penso que uma mutação é necessária para pôr a humanida­de em situação de resolver de maneira adequada, pelo menos por algum tempo, os terríveis problemas postos pelos desequilíbrios, pelas injus­tiças e pela aceleração incontrolada do seu próprio progresso. Isso exi­girá, seguramente, muitos esforços e tempo, visto que os problemas se põem agora à escala do planeta e, dada a nova solidariedade que liga os diversos focos de civilização no mundo, exigem soluções simultanea­mente pluralistas e coordenadas. Sem dúvida que será necessário o esforço de várias gerações para franquear a barreira, tal como aconteceu no Ocidente, quando se passou do modelo antiqo ao modelo cristão ou ainda do homem gótico ao homem clássico. Mas parece-me que estamos desde já envolvidos nesse processo e, se, pela nossa parte, nâo estamos destinados a ver o seu termo, podemos, no entanto, fazer muito para fa­cilitar aos nossos sucessores o caminho do êxito.
Neste aspecto, está a delimitar-se certo objetivo e certo contributo. O objetivo é a realização do homem na sua multidimensionalidade. O contributo é a educação permanente. Não é altura de nos alargarmos sobre estas noções. Limitar-me-ei a dizer que inspiram desde agora o conjunto da ação da UNESCO, em matéria de educação. Quero somente assinalar em que é que elas oferecem novas possibilidades de integrar o desporto na educação. A procura de um modelo educativo multidimensional — que se não deve confundir com a multiplicidade, simul­tânea ou sucessiva, de opções seletivas que se excluem mutuamente, nem com a acumulação de múltiplas disciplinas levada até ao cansaço — é a retomada moderna do movimento humanista que levou a educa­ção aos seus maiores êxitos: os que deram ao homem os meios de auto­domínio e de realização harmoniosa. Nesta perspectiva, a educação con­siste menos na aquisição de conhecimentos e de técnicas, visando a uma particular eficácia intelectual ou física, do que no desenvolvimen­to das atitudes e das aptidões polivalentes que permitam uma realiza­ção autêntica da pessoa. Trata-se essencialmente de "aprender a ser", se­gundo a bela expressão que a Comissão Internacional da UNESCO sobre o desenvolvimento da educação, presidida por Edgar Faure, deu como título ao seu relatório.
Um tal conceito de educação não poderá, evidentemente, acomodar-se com a orientação estritamente intelectualista e utilitária que caracteri­za ainda a maior parte dos sistemas educativos, que eu disse constituir um dos principais obstáculos à penetração do desporto no meio educati­vo. Deve levar, num prazo mais ou menos breve, a uma profunda trans­formação na economia dos programas escolares assim como ao desen­volvimento progressivo do aluno e do estudante. Exige também um novo tipo de relação, no seio do processo educativo, entre o educador e o educando, os quais devem ser considerados ambos, apesar da diferen­ça de funções, como agentes de uma mesma procura de si e de outrem, para um enriquecimento recíproco. E, entretanto, exige um novo tipo de educador, mais próximo do iniciador do que do instrutor.
É impensável que nesta profunda refundição da educação, a educação física e o desporto não encontrem o seu verdadeiro lugar. Constituem elementos demasiado importantes do equilíbrio e da plenitude da pes­soa e oferecem à nova pedagogia muitas possibilidades de animação ativa para serem negligenciados. É necessário ainda, é certo, que aqueles que têm a seu cargo essa formação tomem consciência do movimento de renovação educativa que se propaga através do mundo e se elevem ao nível das circunstâncias. Chegou o momento de mostrarem, eles tam­bém, que são mestres no sentido exato do termo, isto é, portadores de mensagens e demonstradores de exemplos capazes de modelar a vida.
Falei de educação permanente. E, com efeito, essa educação multidimensional, dedicada a aprender a ser, não tem sentido e não pode mes­mo concretizar-se a não ser no âmbito de um esforço co-extensivo simultaneamente à totalidade da comunidade e à duração da existência do indivíduo. Essa perspectiva é cada vez mais aceita e acaba de se ma­nifestar recentemente na terceira Conferência Internacional da UNES­CO sobre a Educação dos Adultos, em Tóquio.
Sem dúvida, estamos ainda longe de assumirmos todas as implicações e mais ainda de realizar as condições da sua aplicação efetiva. Mas, a partir de agora, compreende-se que se deverão dar modificações radicais na organização do sistema educativo, no que se refere especialmente às prioridades que regem a planificação dos esforços e a repartição dos re­cursos, às estruturas governamentais e administrativas e, finalmente, às próprias instalações educativas.
No que diz respeito à repartição dos recursos, penso que se irá para um aumento da percentagem atribuída à educação dos adultos em relação à dos jovens, que até aqui reteve exclusivamente a atenção. E é a oca­sião de lembrar que nada é mais falso do que acreditar que o desporto é apanágio da primeira juventude, como se tem acreditado muitas vezes por influência do prestígio da alta competição, especialmente em algu­mas disciplinas. Jean Borotra, que tenho o prazer de ver entre nós, cons­titui um prestigioso exemplo.
Quanto às estruturas governamentais e administrativas, importa que os serviços responsáveis pela juventude e desportos deixem de formar, como sucede em muitos países, um sistema fechado, freqüentemente muito politizado, para se integrarem abertamente quer no sistema edu­cativo, a que chamarei estabelecido, isto é, escolar ou universitário, quer no sistema de cultura e de comunicação, subentendendo-se que um e outro, embora atualmente distintos, fazem parte de um mesmo conjun­to e que um dia será necessário realizar a unidade fundamental.
Quanto às instalações educativas, põe-se sobretudo o problema da função e da organização da universidade e da escola. A este propósito, de­claro que não me incluo no número daqueles que afirmam que essas instituições, preciosa herança respectivamente do espírito mediterrânico e religioso da Idade Média muçulmana e cristã e da idade industrial, fizeram o seu tempo e devem ser postas de lado. Penso firmemente que devem ser conservadas, mas é claro que é necessário reformá-las profundamente, abrindo-as para todos os aspectos, necessidades e aspi­rações da sociedade moderna e integrando-as num sistema amplo e maleá­vel de educação total e permanente. Acima de tudo, é necessário que esses estabelecimentos deixem de ser universos fechados à margem da vida real — ghettos — como alguns dizem, nâo sem exagero. É isso que está em vias de se realizar em relação à universidade, é isso que se deve realizar também na escola primária e secundária.
É também indubitável que essa transformação, que deverá fazer dos estabelecimentos escolares e universitários centros de vida comunitária reunindo jovens e adultos, misturando o estudo, a vida e o jogo numa simbiose de investigação e de realização cultural, abrirá ao desporto novas possibilidades no seio da educação. Finalmente, por-se-ã termo a uma absurda dualidade de sistemas que muitas vezes se ignoram: por um lado, a educação física e o desporto escolar e universitário, por outro, o desporto e as atividades ao ar livre. Poderia fazer-se a economia de ins­talações desportivas dispendiosas que só funcionam para uma parte da população durante uma parte do tempo, como esses campos de jogos e essas piscinas que fecham no verão sob o pretexto de serem férias ou esses imensos estádios que só abrem para o espetáculo no sábado ou no domingo. Acabar-se-ã com os clubes em que os jovens encontram treinadores desejosos de performances, mas onde raramente encontram educadores preocupados com o homem integral. Acima de tudo, acabar- se-ã com a fragmentação da comunidade e da pessoa e com as frustra­ções e as rupturas de equilíbrio que acompanham sempre aquilo que é incompleto. Saberá o desporto aproveitar as ocasiões que assim se lhe oferecem para a profunda reforma da educação que principia? Saberá, enfim, desempenhar plenamente a sua função na formação individual e social do homem? Não estou tão certo disso como gostaria de estar, porque, para isso, é necessário que também o desporto se reforme e não menos profundamente, por duplo processo de retorno às fontes e de invenção contínua. Permiti-me que indique algumas direções em que, na minha opinião, se devia orientar prioritariamente essa reforma. Acima de tudo, importa que os responsáveis pelo desporto, encarrega­dos de organismos governamentais ou nâo governamentais, concedam um lugar maior nas suas preocupações e objetivos, no plano nacional e internacional, a tudo aquilo que eu inicialmente evoquei como sendo a capacidade educativa do desporto, que é a sua verdadeira realidade humana, e se preocupem menos com o espetáculo que, em si próprio, deveria destinar-se a evidenciar um sentido moral, como o pretendia o fundador dos Jogos Olímpicos modernos. O sucesso do espetáculo desportivo, a importância que assumiu nos costumes infelizmente é muitas vezes explorada para fins alheios e às vezes opostos ao despor­to e que sâo outros tantos fatores de corrupção ou de deformação: o mercantilismo, o chauvinismo, a politica. Chegou o tempo de reagir e de reagir energicamente, se se quer conservar o espírito do desporto. Chegou o tempo de escolher entre o circo romano e a palestra grega. Chegou o tempo de escolher entre a exaltação do orgulho nacional e a da fraternidade humana, entre aquilo que opõe os homens e aquilo que os une. É também necessário que o desporto retorne à natureza. A ex­cessiva procura de proezas que exigem a realização de condições cada vez mais excepcionais, junto ao desejo de rigor que caracteriza a alta competição, sobretudo em confrontos ou em oposições internacionais, levou progressivamente a que o desporto constituísse em um universo físico próprio, por assim dizer estanque, em relação às contingências da verdadeira natureza e por isso anormal, na medida em que se procura realizar a norma abstrata. Aí reside também uma grave deformação, porque o princípio do desporto e a fonte das suas alegrias mais sâs é a restituição do corpo à sua liberdade instrutiva e, portanto, à comunhão do homem com a imensa natureza de que faz parte. Esse regresso à autenticidade e ao à-vontade físico impõe-se nos nossos dias mais do que nunca, para compensar o desequilíbrio crescente introduzido na nossa maneira de viver pelo desenvolvimento da maquinizaçâo e pelas condições artificiais de existência que predominam nos aglomerados urbanos. Na sua origem o movimento desportivo foi principalmente uma evasão dos citadinos para o ar livre. O seu significado profético era advertir a humanidade dos perigos da civilização industrial. Nâo pode­ríamos esquecer esse aspecto altamente salutar do desporto, na medida em que parece que esta civilização destrói e polui cada vez mais o am­biente natural do homem. É necessário que o desporto nâo participe também no processo de desnaturação que nos ameaça. Por fim, uma última observação. O desporto, que se tornou fenômeno universal e é dotado de uma prestigiosa organização mundial, como a organização olímpica, deve assumir as implicações desta universalidade. Quero dizer com isto que deve reconhecer e refletir na sua estrutura e manter e até desenvolver na sua ação a pluralidade das culturas que constitui a rique­za do patrimônio moral da humanidade e pela qual se exprime a sua inesgotável liberdade criadora. Para ascender ao plano universal, é ne­cessário repudiar resolutamente todo etnocentrismo cultural: é uma das finalidades essenciais da UNESCO. Assim, não é pôr em causa o valor permanente dos desportos de origem helénica ou anglo-saxônica obser­var que não são os únicos no mundo cujas capacidades corporais e mo­rais merecem ser valorizadas para fins educativos e estéticos. Não seja­mos nisso prisioneiros de tradições rígidas e abramo-nos resolutamente à diversidade das possibilidades humanas. É paradoxal que os povos do­tados de um sentido inato da dança, conscientes ao mais alto grau das virtudes catárticas e formadoras do jogo e em quem a cultura corporal se associa intimamente à vida da comunidade, se limitem a imitar os desportos doutras nações e precisamente num momento em que nestas se esboça um movimento a favor da libertação das formas e dos ritmos de expressão física. Seria lamentável que a introdução nesses povos de práticas desportivas estritamente codificadas se fizesse em detrimento do seu próprio valor lúdico. Já não será necessário que um desejo de prestígio internacional os incite a um esforço excessivo corn o objetivo de produzir elites de alguns campeões a expensas da progressão das massas. Assim, talvez não seja quimérico formular o voto que, no âm­bito ou ao lado de manifestações mundiais, como os Jogos Olímpicos, se possam um dia organizar competições com uma regulamentação me­nos estrita do que aquelas que conhecemos, onde se apresentam exer­cícios físicos e jogos orginários no gênio de sociedades muito diversas. 0 mundo é uma imensa polifonia. A festa universal da juventude, com que sonhava Pierre de Coubertin, deve ser feita à imagem desta. A humanidade está numa fase de mutação profunda e rápida, temos cons­ciência disso. Procura às apalpadelas o seu caminho através de destinos confusos, grandiosos e simultaneamente temíveis. A educação e o des­porto não poderiam constituir exceção a essa necessidade de transfor­mação. Muito longe de tentarem espacar-lhe, pelo contrário devem con­tribuir para a evolução geral com toda a lucidez e com toda a genero­sidade quo andam liqadas à sua vocação, procedendo, em primeiro lugar, às reformas que se impõem nos seus domínios. Essa tarefa capital de renovação dos sistemas propriamente ditos e da própria sociedade no seu ser global poderá ser feita tanto melhor, penso eu, se desporto e educação trabalharem em conjunto, enriquecendo-se e reforçando-se mutuamente com as suas experiências e os seus recursos. Tal é pelo menos o espírito com que a UNESCO encara esses problemas e pede a colaboração de todas as organizações e de todas as pessoas de boa von­tade que partilham da sua fé no Homem e se dedicam, como ela, ao seu serviço.




[1] Transcrito da Revista Brasileira de Educação Física. Ano 5, n. 16, 1973. Diretor-Geral da UNESCO. Em Aberto, Brasília, ano 1. n. 5, Abril, 1982


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