http://www.cefd.ufes.br/sites/www.cefd.ufes.br/files/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Filipe%20Guidetti.pdf
Betti (1996, p. 114) chega à conclusão semelhante:
Já dissemos que a concepção científica provocou mudanças importantes na área, ao
deslocar o foco tradicional da Educação Física. Como superar suas limitações?
Fomos às ciências e à filosofia, mas se lá ficarmos seremos fisiólogos, sociólogos,
etc. Em Betti (1994b) já apontamos a necessidade de „fazer o caminho de volta‟, e
refocalizar a Educação Física na sua dimensão de práxis, subsidiado agora pelos
conhecimentos científicos e filosóficos, vistos agora não como respostas/soluções
para a prática, mas como dados que tornam os problemas da prática mais claros,
porque vistos sob novos ângulos. Estamos propondo que, em vez de Ciência,
passemos a falar numa „Teoria da Educação Física‟. Estou me referindo a uma teoria
científica da Educação Física, que sistematiza e critica conhecimentos científicos e
filosóficos, recebe e envia demandas à prática e às Ciências/Filosofia. A Teoria da
Educação Física é concebida como um campo dinâmico de pesquisa e reflexão.
Há, portanto, um contexto favorável à necessidade de se construir uma fundamentação
teórica para a EF como prática de intervenção (ou, pelo menos, uma crença compartilhada na
necessidade de fundamentação). É nesse contexto que se insere a Teoria do “se-movimentar”
Humano (TSMH), nosso “objeto” de estudo.
A TSMH foi desenvolvida pelo alemão Andreas Heinrich Trebels e difundida no
Brasil pelo professor Elenor Kunz, após o seu programa de doutoramento, sob a orientação do
professor Trebels, na Alemanha. Trebels é alemão, doutor em Filosofia pela Universidade de
Bonn, foi professor titular em Ciências do Esporte da Universidade de Hannover e hoje está
aposentado. Foi o orientador no doutoramento do professor Kunz, tese que acabou se
transformando no livro “Educação física: ensino & mudanças” (na sua quarta edição em
2004). O artigo “A concepção dialógica do movimento humano: uma teoria do se movimentar‟”,
que vamos tomar em análise como apresentação da TSMH por Trebels, faz
parte da última etapa do estágio de pesquisador visitante de Kunz na Alemanha e também do
intercâmbio (científico, cultural e pedagógico) que envolveu pesquisadores do Brasil e desse
país, e que resultou no livro “Educação Física crítico-emancipatória: com uma perspectiva da
pedagogia alemã do esporte”, cujos organizadores são Kunz e Trebels. Este último atua nas
áreas: Teorias do Movimento Humano; Filosofia do Esporte e da Educação Física; Didática
da Educação Física.
Podemos ver que uma conceituação sobre o corpo/movimento humano, tal qual é
oferecida pela TSMH, fornece parâmetros para que os professores compreendam as imagens que fazem de seus alunos ao analisá-los em movimento (em situação de aula). Ou seja,
coloca-se potencialmente como possibilidade de fundamentação de uma teoria da EF.
Como possível elemento fundamentador de uma teoria pedagógica para a EF
brasileira, a TSMH ainda não foi alvo do debate epistemológico (e do debate acadêmico, em
geral) no campo da EF, como o próprio Kunz reconhece em entrevista concedida em 29-11-
2010:
Como eu falei, eu entrei mais nesse campo da educação e esses estudos do
movimento humano [...] me envolveram bastante. Eu achava, e acho até hoje, que é
um dos estudos mais importantes de se fazerem. Que eu fui fazer, que eu trouxe,
mas que inicialmente não tive muita receptividade. Não me questionaram. Eu criei a
palavra „se-movimentar‟ porque eu queria criar uma palavra para significar os
sujeitos autores, atores que se movimentam. A única coisa de análise crítica que eu
recebi muitas vezes foi de que o português está errado. Teria que ser "movimentar se".
Mas, fora isso, mais ninguém. Então eu mesmo deixei um pouco de lado esses
estudos, e aí, com o tempo, eu fui percebendo a necessidade de retomar isso.
2.1 A TSMH DE TREBELS
Como já dissemos, não tomamos a obra de Trebels em análise por conta do idioma: a
maioria dos textos desse autor não tem tradução do alemão. Além disso, não há circulação de
muitos textos de Trebels no campo acadêmico da EF no Brasil. Tivemos acesso a apenas três
artigos de Trebels (dois publicados em revistas e um capítulo de livro): “Plaidoyer para um
diálogo entre teorias do movimento humano e teorias do movimento no esporte”, de 1992;
“Uma concepção dialógica e uma teoria do movimento humano”, de 2003; “A concepção
dialógica do movimento humano: uma teoria do se-movimentar”, de 2006. Trebels (1992)
mostrava acreditar no diálogo – como algo “irrenunciável”16
– entre teorias sobre o
movimento humano (o que estava em questão era a crítica à concepção de movimento nos
esportes). A maior diferença desse texto para os outros dois é justamente essa aposta no
diálogo. O diálogo não deve conduzir a uma superação completa das perspectivas teóricas
existentes.17 No entanto, “[...] também deverá ser, certamente, colocado em discussão a
abrangência dos resultados científicos e a sua transferência ao contexto exterior à própria
pesquisa, por exemplo, na prática dos esportes” (TREBELS, 1992, p. 338, grifo nosso).
Trebels (2006, p. 24), assim como nos outros textos, procura mostrar como a
abordagem das ciências naturais é insuficiente para “[...] esclarecer comportamentos e
expressões corporais humanas”. E é por isso que procura “[...] verificar [...] quais foram os
conceitos e as representações teóricas desenvolvidas para melhor compreender o movimento
humano” (TREBELS, 2006, p. 24, grifo nosso). Como o texto de 2003 é praticamente o
mesmo texto de 2006 (muda pouca coisa, o de 2006 é mais detalhado), optamos por ficar com
a apresentação da TSMH feita por Trebels no texto de 2006.
A Teoria do “se-movimentar” humano parte do conceito de “movimento próprio” de
Weizsäcker, Christian e Buytendijk e, principalmente, da Concepção Dialógica do
Movimento Humano, desenvolvida por Gordijn e, depois, por Tamboer. É necessário salientar
que é grande a influência de Merleau-Ponty, a partir de sua “Fenomenologia da percepção”,
na gênese da TSMH. Weizsäcker é um teórico ligado à Gestalt que procura entender a
inserção do sujeito na Biologia. Outros dois autores que fazem parte da gênese da TSMH
também estão ligados à Gestalt: Christian e Buytendijk. Christian traz a ideia da
aprendizagem de movimentos via “consciência de valor ao fazer”. Já Buytendijk contribui ao
elucidar a diferença entre processo e função na teoria do movimento humano. Gordijn e
(depois) Tamboer têm como grande influência a fenomenologia francesa e, principalmente, a
“Fenomenologia da percepção” de Merleau-Ponty. Podemos ver que a base teórica da TSMH
é eminentemente fenomenológica.
18
O objetivo do artigo, que apresenta as principais características dessa teoria, é elaborar
um quadro teórico para uma melhor compreensão do movimento humano em contraste à
crítica ao paradigma empírico-analítico, que é feita também ao longo do artigo. Para Trebels
(2006), esse paradigma tem bastante eco na interpretação que as Ciências do Esporte fazem
sobre o movimento humano. Segundo o autor, trata-se de uma interpretação técnica. Nessa
interpretação do movimento humano, seriam valorizadas a “[...] sobrepujança, geralmente
medida quantitativamente [e a] [...] objetivação das condições sob as quais o desempenho
esportivo pode ser legitimamente realizado” (TREBELS, 2006, p. 36). Essa última
característica garantiria que o que fosse produzido pelo indivíduo seria “[...] avaliado por
critérios de validade reconhecidos” (p. 36). O autor quer dizer que o esporte é o lócus
privilegiado para essa interpretação do movimento humano oriunda do paradigma empírico analítico.
Trebels (p. 37) diz que as Ciências do Esporte
[...] oferecem conhecimentos essenciais para o desenvolvimento de qualidades
físicas básicas para desempenhos antes impensáveis e para preparar atletas para a
realização de movimentos antes considerados impossíveis. A Fisiologia do Esforço,
a Ciência do Treinamento, as Ciências do Movimento Humano são, nesta
perspectiva, teorias instrumentais que incorporam a Bioengenharia aos seres
humanos. Elas seguem o paradigma empírico-analítico, apoiando-se nas leis da
natureza e que podem ser aplicadas ao ser humano (como parte da natureza).
Essa caracterização, proveniente das ciências naturais, preocupa-se em explicar o
movimento humano a partir de sua natureza física. Devido à hegemonia do paradigma
empírico-analítico na análise do movimento humano, Trebels (2006) elenca os seguintes
problemas:19
- Trata-se de uma abordagem “totalizadora” (p. 23) e “hegemônica” (p. 38).
- Por ser estritamente objetiva, é reducionista. “Quem, por exemplo, tomar o corpo
humano na sua objetivação meramente somática – o que é uma premissa do trato científico
que se orienta pela perspectiva empírico-analítica – deve, obrigatoriamente, desconsiderar a
relação ser humano-mundo, proposta por Merleau-Ponty, e, por isso, restringe seu objeto de
pesquisa a uma perspectiva muito limitada de ser humano” (TREBELS, 2006, p. 39). Isso fica
claro em um exemplo utilizado por Trebels para demonstrar uma experiência de extensão do
tempo. Trata-se da percepção de uma aluna acerca do tempo que levou para realizar o salto
reversão com o apoio das mãos sobre um plinto baixo. O argumento central é que o
movimento e a percepção criam um tempo-espaço para realização do movimento, e se isso é
ignorado, ignoramos como o movimento “realmente” acontece:
- Mortificação e mecanização do ser humano em movimento. Envolve a formulação de
leis naturais baseadas no princípio da causalidade. Não é sem motivo que os movimentos
devem ser passíveis de reconstrução mecânica nas Ciências do Esporte. “Movimentos
esportivos bem-sucedidos – geralmente os dos campeões mundiais, dos grandes atletas – não
se desenvolvem de forma intuitiva, mas exigem o controle biomecânico da reconstrução
mecânica” (TREBELS, 2006, p. 31-33). Isso acaba se configurando como um problema,
porque o movimento surgiria independentemente da possibilidade de reconstrução mecânica.
As próprias regras de realização do movimento surgem a partir da sua efetivação. A
compreensão do movimento como processo – “[...] grupos de fenômenos em suas leis
naturais, conectados em um tempo determinado como uma série de acontecimentos isolados”
(BUYTENDIJK, 1956, p. 7, apud TREBELS, 2006, p. 32) – em que “[...] os biomecânicos
equiparam-se a engenheiros – [ocasiona justamente a] [...] mortificação do organismo vivo”
(TREBELS, 2006, p. 32). Trata-se de conhecimento baseado no “como funciona” das coisas.
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