sexta-feira, 27 de março de 2015

Dissertação - Centro de Educação Física e Desportos - Filipe Guidetti - recorte para entender melhor Andreas Trebels


http://www.cefd.ufes.br/sites/www.cefd.ufes.br/files/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Filipe%20Guidetti.pdf 

Betti (1996, p. 114) chega à conclusão semelhante: Já dissemos que a concepção científica provocou mudanças importantes na área, ao deslocar o foco tradicional da Educação Física. Como superar suas limitações? Fomos às ciências e à filosofia, mas se lá ficarmos seremos fisiólogos, sociólogos, etc. Em Betti (1994b) já apontamos a necessidade de „fazer o caminho de volta‟, e refocalizar a Educação Física na sua dimensão de práxis, subsidiado agora pelos conhecimentos científicos e filosóficos, vistos agora não como respostas/soluções para a prática, mas como dados que tornam os problemas da prática mais claros, porque vistos sob novos ângulos. Estamos propondo que, em vez de Ciência, passemos a falar numa „Teoria da Educação Física‟. Estou me referindo a uma teoria científica da Educação Física, que sistematiza e critica conhecimentos científicos e filosóficos, recebe e envia demandas à prática e às Ciências/Filosofia. A Teoria da Educação Física é concebida como um campo dinâmico de pesquisa e reflexão.

Há, portanto, um contexto favorável à necessidade de se construir uma fundamentação teórica para a EF como prática de intervenção (ou, pelo menos, uma crença compartilhada na necessidade de fundamentação). É nesse contexto que se insere a Teoria do “se-movimentar” Humano (TSMH), nosso “objeto” de estudo.

A TSMH foi desenvolvida pelo alemão Andreas Heinrich Trebels e difundida no Brasil pelo professor Elenor Kunz, após o seu programa de doutoramento, sob a orientação do professor Trebels, na Alemanha. Trebels é alemão, doutor em Filosofia pela Universidade de Bonn, foi professor titular em Ciências do Esporte da Universidade de Hannover e hoje está aposentado. Foi o orientador no doutoramento do professor Kunz, tese que acabou se transformando no livro “Educação física: ensino & mudanças” (na sua quarta edição em 2004). O artigo “A concepção dialógica do movimento humano: uma teoria do se movimentar‟”, que vamos tomar em análise como apresentação da TSMH por Trebels, faz parte da última etapa do estágio de pesquisador visitante de Kunz na Alemanha e também do intercâmbio (científico, cultural e pedagógico) que envolveu pesquisadores do Brasil e desse país, e que resultou no livro “Educação Física crítico-emancipatória: com uma perspectiva da pedagogia alemã do esporte”, cujos organizadores são Kunz e Trebels. Este último atua nas áreas: Teorias do Movimento Humano; Filosofia do Esporte e da Educação Física; Didática da Educação Física. Podemos ver que uma conceituação sobre o corpo/movimento humano, tal qual é oferecida pela TSMH, fornece parâmetros para que os professores compreendam as imagens que fazem de seus alunos ao analisá-los em movimento (em situação de aula). Ou seja, coloca-se potencialmente como possibilidade de fundamentação de uma teoria da EF. Como possível elemento fundamentador de uma teoria pedagógica para a EF brasileira, a TSMH ainda não foi alvo do debate epistemológico (e do debate acadêmico, em geral) no campo da EF, como o próprio Kunz reconhece em entrevista concedida em 29-11- 2010: Como eu falei, eu entrei mais nesse campo da educação e esses estudos do movimento humano [...] me envolveram bastante. Eu achava, e acho até hoje, que é um dos estudos mais importantes de se fazerem. Que eu fui fazer, que eu trouxe, mas que inicialmente não tive muita receptividade. Não me questionaram. Eu criei a palavra „se-movimentar‟ porque eu queria criar uma palavra para significar os sujeitos autores, atores que se movimentam. A única coisa de análise crítica que eu recebi muitas vezes foi de que o português está errado. Teria que ser "movimentar se". Mas, fora isso, mais ninguém. Então eu mesmo deixei um pouco de lado esses estudos, e aí, com o tempo, eu fui percebendo a necessidade de retomar isso.



2.1 A TSMH DE TREBELS Como já dissemos, não tomamos a obra de Trebels em análise por conta do idioma: a maioria dos textos desse autor não tem tradução do alemão. Além disso, não há circulação de muitos textos de Trebels no campo acadêmico da EF no Brasil. Tivemos acesso a apenas três artigos de Trebels (dois publicados em revistas e um capítulo de livro): “Plaidoyer para um diálogo entre teorias do movimento humano e teorias do movimento no esporte”, de 1992;

“Uma concepção dialógica e uma teoria do movimento humano”, de 2003; “A concepção dialógica do movimento humano: uma teoria do se-movimentar”, de 2006. Trebels (1992) mostrava acreditar no diálogo – como algo “irrenunciável”16 – entre teorias sobre o movimento humano (o que estava em questão era a crítica à concepção de movimento nos esportes). A maior diferença desse texto para os outros dois é justamente essa aposta no diálogo. O diálogo não deve conduzir a uma superação completa das perspectivas teóricas existentes.17 No entanto, “[...] também deverá ser, certamente, colocado em discussão a abrangência dos resultados científicos e a sua transferência ao contexto exterior à própria pesquisa, por exemplo, na prática dos esportes” (TREBELS, 1992, p. 338, grifo nosso). Trebels (2006, p. 24), assim como nos outros textos, procura mostrar como a abordagem das ciências naturais é insuficiente para “[...] esclarecer comportamentos e expressões corporais humanas”. E é por isso que procura “[...] verificar [...] quais foram os conceitos e as representações teóricas desenvolvidas para melhor compreender o movimento humano” (TREBELS, 2006, p. 24, grifo nosso). Como o texto de 2003 é praticamente o mesmo texto de 2006 (muda pouca coisa, o de 2006 é mais detalhado), optamos por ficar com a apresentação da TSMH feita por Trebels no texto de 2006. A Teoria do “se-movimentar” humano parte do conceito de “movimento próprio” de Weizsäcker, Christian e Buytendijk e, principalmente, da Concepção Dialógica do Movimento Humano, desenvolvida por Gordijn e, depois, por Tamboer. É necessário salientar que é grande a influência de Merleau-Ponty, a partir de sua “Fenomenologia da percepção”, na gênese da TSMH. Weizsäcker é um teórico ligado à Gestalt que procura entender a inserção do sujeito na Biologia. Outros dois autores que fazem parte da gênese da TSMH também estão ligados à Gestalt: Christian e Buytendijk. Christian traz a ideia da aprendizagem de movimentos via “consciência de valor ao fazer”. Já Buytendijk contribui ao 

elucidar a diferença entre processo e função na teoria do movimento humano. Gordijn e (depois) Tamboer têm como grande influência a fenomenologia francesa e, principalmente, a “Fenomenologia da percepção” de Merleau-Ponty. Podemos ver que a base teórica da TSMH é eminentemente fenomenológica. 18 O objetivo do artigo, que apresenta as principais características dessa teoria, é elaborar um quadro teórico para uma melhor compreensão do movimento humano em contraste à crítica ao paradigma empírico-analítico, que é feita também ao longo do artigo. Para Trebels (2006), esse paradigma tem bastante eco na interpretação que as Ciências do Esporte fazem sobre o movimento humano. Segundo o autor, trata-se de uma interpretação técnica. Nessa interpretação do movimento humano, seriam valorizadas a “[...] sobrepujança, geralmente medida quantitativamente [e a] [...] objetivação das condições sob as quais o desempenho esportivo pode ser legitimamente realizado” (TREBELS, 2006, p. 36). Essa última característica garantiria que o que fosse produzido pelo indivíduo seria “[...] avaliado por critérios de validade reconhecidos” (p. 36). O autor quer dizer que o esporte é o lócus privilegiado para essa interpretação do movimento humano oriunda do paradigma empírico analítico. Trebels (p. 37) diz que as Ciências do Esporte [...] oferecem conhecimentos essenciais para o desenvolvimento de qualidades físicas básicas para desempenhos antes impensáveis e para preparar atletas para a realização de movimentos antes considerados impossíveis. A Fisiologia do Esforço, a Ciência do Treinamento, as Ciências do Movimento Humano são, nesta perspectiva, teorias instrumentais que incorporam a Bioengenharia aos seres humanos. Elas seguem o paradigma empírico-analítico, apoiando-se nas leis da natureza e que podem ser aplicadas ao ser humano (como parte da natureza). Essa caracterização, proveniente das ciências naturais, preocupa-se em explicar o movimento humano a partir de sua natureza física. Devido à hegemonia do paradigma 

empírico-analítico na análise do movimento humano, Trebels (2006) elenca os seguintes problemas:19 - Trata-se de uma abordagem “totalizadora” (p. 23) e “hegemônica” (p. 38). - Por ser estritamente objetiva, é reducionista. “Quem, por exemplo, tomar o corpo humano na sua objetivação meramente somática – o que é uma premissa do trato científico que se orienta pela perspectiva empírico-analítica – deve, obrigatoriamente, desconsiderar a relação ser humano-mundo, proposta por Merleau-Ponty, e, por isso, restringe seu objeto de pesquisa a uma perspectiva muito limitada de ser humano” (TREBELS, 2006, p. 39). Isso fica claro em um exemplo utilizado por Trebels para demonstrar uma experiência de extensão do tempo. Trata-se da percepção de uma aluna acerca do tempo que levou para realizar o salto reversão com o apoio das mãos sobre um plinto baixo. O argumento central é que o movimento e a percepção criam um tempo-espaço para realização do movimento, e se isso é ignorado, ignoramos como o movimento “realmente” acontece: - Mortificação e mecanização do ser humano em movimento. Envolve a formulação de leis naturais baseadas no princípio da causalidade. Não é sem motivo que os movimentos devem ser passíveis de reconstrução mecânica nas Ciências do Esporte. “Movimentos esportivos bem-sucedidos – geralmente os dos campeões mundiais, dos grandes atletas – não se desenvolvem de forma intuitiva, mas exigem o controle biomecânico da reconstrução mecânica” (TREBELS, 2006, p. 31-33). Isso acaba se configurando como um problema, porque o movimento surgiria independentemente da possibilidade de reconstrução mecânica. As próprias regras de realização do movimento surgem a partir da sua efetivação. A compreensão do movimento como processo – “[...] grupos de fenômenos em suas leis naturais, conectados em um tempo determinado como uma série de acontecimentos isolados” (BUYTENDIJK, 1956, p. 7, apud TREBELS, 2006, p. 32) – em que “[...] os biomecânicos equiparam-se a engenheiros – [ocasiona justamente a] [...] mortificação do organismo vivo” (TREBELS, 2006, p. 32). Trata-se de conhecimento baseado no “como funciona” das coisas.  

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