domingo, 25 de outubro de 2015

Manifesto Mundial da Educação Física e do Desporto

Manifesto Mundial da Educação Física e do Desporto conferia à Educação Física um impreciso estatuto científico: “A Educação Física é uma ciência relativamente nova. Ela não deve, portanto, ser dogmática e restrita a certas técnicas ou formas pedagógicas” (Manifesto, 1971: 13) .
Observe-se a orientação completamente diversa dos textos acima. Enquanto para Faria Jr. pesquisa em Educação Física é pesquisa educacional, ligada ao ensino, à escola e aos professores, para o Manifesto a Educação Física é uma ciência que vai muito além da dimensão pedagógica. Isso pode ser indicativo das correlações diversas: primeiro, a Educação Física ampliava seu objeto de estudo sob a batuta dos órgãos internacionais, como indica o Manifesto, documento patrocinado pela
UNESCO. É importante destacar que o Manifesto trazia implícito uma “política” internacional de Educação Física e esporte, o que ajuda a fortalecer a hipótese de dependência cultural. Mas pelo menos no plano interno brasileiro, essa ampliação do objeto acaba por indicar a ampliação do campo de atuação dos profissionais da área.
Assim é que se aponta a necessidade, ainda no Manifesto, de a Educação Física utilizar os mais eficazes processos técnicos e pedagógicos. Esta necessidade acentua novamente a importância de sólida formação dos educadores e da pesquisa científica.
“Em Educação Física, como em outras atividades, não se pode deixar o indivíduo realizar práticas sem sentido” (Manifesto, 1971: 17).

Página 111 - Taborda de Oliveira - Tese

Educação Física escolar contemporânea: segundo a perspectiva de seus autores

Fensterseifer e Silva (2011) pontuaram também certas características que fundamentam experiências inovadoras, como:
  • Proposta pedagógica articulada com o currículo da escola;
  • Desenvolvimento de conteúdos de forma progressiva e com preocupação sistematizadora;
  • Envolvimento do conjunto dos(as) alunos(as) nas aulas;
  • A presença de conteúdos variados representativos da diversidade que compõe a cultura corporal de movimento;
  • Processos de avaliação articulados com os objetivos do componente curricular.

http://www.efdeportes.com/efd182/educacao-fisica-escolar-contemporanea.htm

  • FENSTERSEIFER, P, E. SILVA, M, A da. Ensaiando o “novo” em Educação Física Escolar: a perspectiva de seus atores. Rev. Bras. Ciênc. Esporte, Florianópolis, v. 33, n. 1, p. 119-134, 2011.
  • FENSTERSEIFER, P, E; GONZÁLEZ, F. J; Entre o “não mais” e o “ainda não”: Pensando saídas do não lugar da EF escolar I e II. Cadernos de Formação RBCE, p. 10-21, mar. 2010.
  • SILVA, Maria Cecília de Paula. Educar para superar: uma reflexão sobre a educação física escolar. Pensar a prática, Goiânia - GO, v. 7, n. 2, p. 205-221, 2004.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Leitura destas páginas para o dia 28-10-2015
Pós-graduação em Educação Físca UFMT
Professor Tarcísio e Professora Luciane
Horário 18h

A AREA DE LINGUAGENS .....................................................................................................29
OBJETIVOS GERAIS DA ÁREA DE LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO BÁSICA .................31
A ÁREA DE LINGUAGENS NO ENSINO FUNDAMENTAL ................................................31
OBJETIVOS GERAIS DA ÁREA DE LINGUAGENS NO ENSINO FUNDAMENTAL  ........33
A ÁREA DE LINGUAGENS NO ENSINO MÉDIO .................................................................34
OBJETIVOS GERAIS DA ÁREA DE LINGUAGENS NO ENSINO MÉDIO ..........................35


Para baixar o livro clique no link abaixo.


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documento/BNCC-APRESENTACAO.pdf


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Coisas ditas / Pierre Bourdieu

Programa para uma sociologia do esporte

Parte dos obstáculos para uma sociologia científica do esporte deve-se ao fato de que os sociólogos do esporte são de algum modo duplamente dominados, tanto no universo dos sociólogos quanto no universo do esporte. Como seria muito demorado desenvolver essa afirmação um pouco brutal, procederei, à maneira dos profetas, mediante uma parábola. Ontem à noite, em uma discussão com um de meus amigos, o sociólogo americano Aaron Cicourel, soube que os grandes atletas negros, que nos Estados Unidos em geral são pagos por grandes universidades, como a Universidade de Stanford, vivem numa espécie de gueto dourado, pelo fato de as pessoas de direita não falarem de bom grado com os negros e as de esquerda não falarem de bom grado com os esportistas. Se refletirmos sobre isso, desenvolvendo-lhe o paradigma, talvez encontremos aqui o princípio das dificuldades particulares que a sociologia do esporte encontra: desdenhada pelos sociólogos, ela é desprezada pelos esportistas. A lógica da divisão social do trabalho tende a se reproduzir na divisão do trabalho científico. Assim, de um lado existem pessoas que conhecem muito bem o esporte na forma prática, mas que não sabem falar dele, e, de outro, pessoas que conhecem muito mal o esporte na prática e que poderiam falar dele, mas não se dignam a fazê-lo, ou o fazem a torto e a direito. [...]
Para que uma sociologia do esporte possa se constituir, é preciso primeiro perceber que não se pode analisar um esporte particular independentemente do conjunto das práticas esportivas; é preciso pensar o espaço das práticas esportivas como um sistema no qual cada elemento recebe seu valor distintivo. Em outros termos, para compreender um esporte, qualquer que seja ele, é preciso reconhecer a posição que ele ocupa no espaço dos esportes. Este pode ser construído a partir de conjuntos de indicadores, como, de um lado, a distribuição dos praticantes segundo sua posição no espaço social, a distribuição das diferentes federações, segundo o número de adeptos, sua riqueza, as características sociais dos dirigentes, etc., ou, de outro lado, o tipo de relação com o corpo que ele favorece ou exige, conforme implique um contato direto, um corpo-a-corpo, como a luta ou o rúgbi, ou, ao contrário, exclua qualquer contato, como o golfe, ou só o autorize por bola interposta, como o tênis, ou por intermédio de instrumentos, como a esgrima. Em seguida, é preciso relacionar esse espaço de esportes como o espaço social que se manifesta nele. Isso a fim de evitar os erros ligados ao estabelecimento de uma relação direta entre um esporte e um grupo que a intuição comum sugere. De fato, logo de saída sente-se a relação privilegiada estabelecida hoje entre a luta e os membros das classes populares, ou entre o aikidô e a nova pequena burguesia. São coisas que as pessoas compreendem até rápido demais. O trabalho do sociólogo consiste em estabelecer as propriedades socialmente pertinentes que fazem com que um esporte tenha afinidades com os interesses, gostos e preferências de uma determinada categoria social. Assim, como bem mostra Jean-Paul Clément, no caso da luta, por exemplo, a importância do corpo a corpo, acentuada pela nudez dos lutadores, induz um contato corporal áspero e direto, enquanto no aikidô é efêmero, distanciado, e a luta no chão inexiste. Se compreendemos tão facilmente o sentido da oposição entre a luta e o aikidô, é porque a oposição entre “terra a terra”, “viril”, “corpo a corpo”, “direto”, etc., e “aéreo”, “leve”, “distanciado”, “gracioso”, ultrapassa o terreno do esporte e o antagonismo entre duas práticas de luta. Em suma, o elemento determinante do sistema de preferências é aqui a relação com o corpo, com o envolvimento do corpo, que está associada a uma posição social e a uma experiência originária do mundo físico e social. Essa relação com o corpo é solidária com toda a relação com o mundo: as práticas mais distintivas são também aquelas que asseguram a relação mais distanciada com o adversário, são também as mais estetizadas, na medida em que, nelas, a violência está mais eufemizada, e a forma e as formalidades prevalecem sobre a força e a função. A distância social se retraduz muito bem na lógica do esporte: o golfe instaura a distância por toda parte, no que se refere aos não-praticantes, pelo espaço reservado, harmoniosamente ordenado, onde se desenrola a prática esportiva, no que se refere aos adversários, pela própria lógica do confronto, que exclui todo contato direto, ainda que pela intermediação de uma bola.
Mas isso não basta e pode até levar a uma visão realista e substancialista, não só de cada um dos esportes e do conjunto dos respectivos praticantes, mas também da relação entre os dois. Como eu havia tentado mostrar na introdução ao VII Congresso do HISPA, é preciso ter cuidado para não estabelecer uma relação direta, como acabo de fazer, entre um esporte e uma posição social, entre a luta ou o futebol e os operários, entre o judô e os funcionários. Mesmo porque verificaríamos facilmente que os operários estão longe de ser os mais representados entre os futebolistas. Na verdade, a correspondência, que é uma autêntica homologia, estabelece-se entre o espaço das práticas esportivas, ou, mais precisamente, das diferentes modalidades finamente analisadas da prática dos diferentes esportes, e o espaço das posições sociais. É na relação entre esses dois espaços que se definem as propriedades pertinentes de cada prática esportiva. E as próprias mudanças nas práticas só podem ser compreendidas, nessa lógica, na medida em que um dos fatores que as determinam é a vontade de manter no nível das práticas a distância que existe entre as posições. A história das práticas esportivas só pode ser uma história estrutural, levando em conta as transformações sistemáticas acarretadas, por exemplo, pelo surgimento de um esporte novo (os esportes californianos) ou a difusão de um esporte existente, como o tênis. Parênteses: uma das dificuldades na análise das práticas esportivas reside no fato de que a unidade nominal (tênis, esqui, futebol) considerada pelas estatísticas (inclusive as melhores e mais recentes delas, como a do Ministério dos Assuntos Culturais) mascara uma dispersão, mais ou menos forte, conforme os esportes, das maneiras de praticá-los, e no fato de que essa dispersão cresce quando o aumento do número de praticantes (que pode ser apenas o efeito da intensificação da prática das categorias já praticantes) é acompanhado de uma diversificação social desses praticantes. É o caso do tênis, cuja unidade nominal máscara que, sob o mesmo nome, coexistem maneiras de praticar tão diferentes quanto são diferentes, em sua categoria, o esqui fora da pista, o esqui de circuito e o esqui comum: o tênis dos pequenos clubes municipais, que se pratica com jeans e Adidas, num chão duro, já não tem muito mais em comum com o tênis de traje branco e saia plissada que eram obrigatórios há uns vinte anos e que se perpetuam nos clubes seletos (ainda seria encontrado todo um universo de diferenças ao nível do estilo dos jogadores, de sua relação com a competição, com o treinamento, etc.).
Em suma, a prioridade das prioridades é a construção da estrutura do espaço das práticas esportivas do qual as monografias consagradas a esportes particulares vão registrar os efeitos. Se não sei que as perturbações de Urano são determinadas por Netuno, acreditarei que compreendo o que se passa em Urano, quando na realidade compreenderei os efeitos de Netuno. O objeto da história é a história dessas transformações da estrutura, que só são compreensíveis a partir do conhecimento do que era a estrutura em dado momento (o que significa que a oposição entre estrutura e transformação, entre estática e dinâmica, é totalmente fictícia e que não há outro modo de compreender a transformação a não ser a partir de um conhecimento da estrutura). Eis o primeiro ponto.
O segundo ponto é que esse espaço dos esportes não é um universo fechado sobre si mesmo. Ele está inserido num universo de práticas e consumos, eles próprios estruturados e constituídos como sistema. Há boas razões para se tratar as práticas esportivas como um espaço relativamente autônomo, mas não se deve esquecer que esse espaço é o lugar de forças que não se aplicam só a ele. Quero simplesmente dizer que não se pode estudar o consumo esportivo, se quisermos chamá-lo assim, independentemente do consumo alimentar ou do consumo de lazer em geral. As práticas esportivas passíveis de serem registradas pela pesquisa estatística podem ser descritas como a resultante da relação entre uma oferta e uma procura, ou, mais precisamente, entre o espaço dos produtos oferecidos num dado momento e o espaço das disposições (associadas à posição ocupada no espaço social e passíveis de se exprimirem em outros tipos de consumo em relação com um outro espaço de oferta).
Quando se tem em mente a lógica estrutural no interior da qual está definida cada uma das práticas, o que deve ser a prática científica concreta? O trabalho do pesquisador consiste simplesmente em desenhar esse espaço, apoiando-se, por exemplo, na estrutura da distribuição dos lutadores, dos boxeadores, dos jogadores de rúgbi, etc., por sexo, por idade, por profissão? Na verdade, esse quadro estrutural pode, durante certo tempo, continuar grosseiramente desenhado, em função das estatísticas globais que estão disponíveis e sobretudo dos limites dessas estatísticas e dos códigos segundo os quais elas são construídas.
Aí está um princípio de método bem geral: antes de se contentar em conhecer a fundo um pequeno setor da realidade da qual não se sabe muito, por não se ter colocado a questão, como ele se situa no espaço de onde foi destacado e o que o seu funcionamento pode dever a essa posição, é preciso — com o risco de contrariar as expectativas positivistas que, seja dito de passagem, tudo parece justificar (“mais vale trazer uma pequena contribuição modesta e precisa do que erguer grandes construções superficiais”) —, é preciso, portanto, à maneira dos arquitetos acadêmicos, que apresentavam um esboço em carvão do conjunto do edifício no interior do qual se situava a parte elaborada em detalhe, esforçar-se por construir uma descrição sumária do conjunto do espaço considerado.
Por mais imperfeito que seja esse quadro provisório, sabe- se ao menos que ele deve ser preenchido, e que os próprios trabalhos empíricos que ele orienta contribuirão para preenchê-lo. E ainda permanece o fato de que esses trabalhos são radicalmente diferentes, em sua própria intenção, do que teriam sido na ausência desse quadro, que é a condição de uma construção adequada dos objetos da pesquisa empírica particular. Esse esquema teórico (aqui, a idéia de espaço dos esportes; em outro nível, a noção de campo do poder), mesmo que ele permaneça em grande parte vazio, mesmo que ele forneça sobretudo prevenções e orientações pragmáticas, faz com que eu escolha meus objetos de outro modo e que possa maximizar o rendimento das monografias: se, por exemplo, só podendo estudar três esportes, tenho em mente o espaço dos esportes, e hipóteses referentes aos eixos segundo os quais esse espaço se constrói, poderei escolher maximizar o rendimento dos meus investimentos científicos escolhendo três pontos bem afastados no espaço. Ou, então, poderei, como fez, por exemplo, Jean-Paul Clément, optar por estudar um subespaço nesse espaço, o subespaço dos esportes de combate, e fazer, nessa escala, um estudo do efeito de estrutura apreendendo a luta, o judô, o aikidô com três pontos de um mesmo subcampo de forças. Poderei, sem correr o risco de me perder em detalhes, ver de muito perto o que me parece ser a condição do trabalho científico, filmar as lutas, cronometrar quanto tempo se passa deitado no chão na luta, no judô, no aikidô, em suma, poderei avaliar tudo o que é possível avaliar, mas a partir de uma construção que determina a escolha dos objetos e dos traços pertinentes. Tenho consciência, tendo muito pouco tempo, do caráter um pouco abrupto, peremptório e talvez aparentemente contraditório do que acabo de dizer. Entretanto, acho que dei indicações suficientes sobre o que pode ser um método que vise instaurar a dialética entre o global e o particular, o único que pode permitir conciliar a visão global e sinóptica que a construção da estrutura de conjunto exige com a visão idiográfica, aproximada. O antagonismo entre a grande visão macrossociológica e a visão microscópica de uma microssociologia, ou entre a construção das estruturas objetivas e a descrição das representações subjetivas dos agentes, de suas construções práticas, desaparece, bem como todas as oposições em forma de “par epistemológico” (entre teoria e empiria, etc.), a partir do momento em que se tenha conseguido — o que me parece ser a arte por excelência do pesquisador — investir um problema teórico de grande alcance num objeto empírico bem-construído (por referência ao espaço global no qual está situado) e controlável com os meios disponíveis, isto é, eventualmente, por um pesquisador isolado, sem apoio financeiro, reduzido apenas à sua própria força de trabalho.
Mas preciso corrigir a impressão de realismo objetivista que pode dar minha referência a um “quadro estrutural” concebido como preliminar à análise empírica. Eu sempre digo que as estruturas não são outra coisa senão o produto objetivado das lutas históricas tal como se pode apreendê-lo num dado momento do tempo. E o universo das práticas esportivas que a pesquisa estatística fotografa em certo momento não é senão a resultante da relação entre uma oferta, produzida por toda a história anterior, isto é, um conjunto de “modelos”, de práticas (regras, equipamentos, instituições especializadas), e uma procura, inscrita nas disposições. A própria oferta tal como se apresenta num dado momento, sob a forma de um conjunto de esportes passíveis de serem praticados (ou vistos), já é produto de uma longa série de relações entre modelos de práticas e dis-posições para a prática. Por exemplo, como bem mostrou Christian Pociello, o programa de práticas corporais que a palavra “rúgbi” designa não é o mesmo — ainda que, em sua definição formal, técnica, tenha permanecido idêntico, com algumas poucas mudanças de regras — nos anos 30, em 1950 e em 1980. Ele é marcado, na objetividade e nas representações, pelas apropriações de que foi objeto e pelas especificações (por exemplo, a “violência”) que recebeu na “realização” concreta operada pelos agentes dotados de disposições socialmente constituídas de uma forma particular (por exemplo, nos anos 30, os estudantes do PUC e do SBUC, ou de Oxford e Cambridge, e, nos anos 80, os mineiros galeses e os agricultores, os pequenos comerciantes ou os funcionários de Romans, de Toulon ou de Béziers). Esse efeito de apropriação social faz com que, a todo momento, cada uma das “reali-dades” oferecidas sob o nome de esporte seja marcada, na objetividade, por um conjunto de propriedades que não estão inscritas na definição puramente técnica, que podem até ser oficialmente excluídas dela, e que orientam as práticas e as escolhas (entre outras coisas, dando um fundamento objetivo aos juízos do tipo “isso é coisa de pequeno burguês” ou “coisa de intelectual”, etc.). Assim, a distribuição diferencial das práticas esportivas resulta do estabelecimento de uma relação entre dois espaços homólogos, um espaço das práticas possíveis, a oferta, e um espaço das disposições a serem praticadas, a procura: do lado da oferta, temos um espaço dos esportes entendidos como programas de práticas esportivas, que são caracterizadas, em primeiro lugar, em suas propriedades intrínsecas, técnicas (isto é, em particular, as possibilidades e sobretudo as impossibilidades que eles oferecem à expressão das diferentes disposições corporais), e, em segundo lugar, nas suas propriedades relacionais, estruturais, tal como se definem em relação ao conjunto dos outros programas de práticas esportivas simultaneamente oferecidas, mas que só se realiza plenamente num dado momento, recebendo as propriedades de apropriação que sua associação dominante lhes confere, tanto na realidade como na representação, através dos participantes modais, em relação a uma posição no espaço social; por outro lado, da parte da procura, temos um espaço das disposições esportivas que, enquanto dimensão do sistema de disposições (do habitus), estão relacionalmente, estruturalmente, caracterizadas, como as posições às quais elas correspondem, e que num dado momento são definidas na particularidade de sua especificação pelo estado atual da oferta (que contribui para produzir a necessidade, apresentando-lhe a possibilidade efetiva de sua realização) e também pela realização da oferta no estado anterior. Acho que este é um modelo bem geral que rege as mais diferentes práticas de consumo. Desse modo, vimos que Vivaldi ganhou, num intervalo de vinte anos, sentidos sociais totalmente opostos, e passou do estado de “redescoberta” musicológica ao estatuto de música de fundo no supermercado Monoprix. Ainda que seguramente um esporte, uma obra musical ou um texto filosófico definam, devido às suas propriedades intrínsecas, os limites dos usos sociais que podem ser feitos deles, eles se prestam a uma diversidade de utilizações e são marcados a cada momento pelo uso domi-nante que é feito deles. Um autor filosófico, Spinoza ou Kant, por exemplo, na verdade daquilo que se propõe a percepção, nunca se reduz à verdade intrínseca da obra, e, em sua verdade social, ele engloba as leituras mais importantes que fazem dela os kantianos e os spinozistas do momento, eles próprios definidos não só por sua relação objetiva ou subjetiva com os kantianos e com os spinozistas do período anterior e suas leituras, mas também com os promotores ou com os defensores de outras filosofias. É contra esse complexo indivisível que é o Kant apropriado por kantianos que projetam em Kant, e não apenas pela leitura que fazem dele, suas propriedades sociais, qué Heidegger reage quando opõe um Kant metafísico, quase existencialista (por exemplo, com o tema da finitude), ao Kant cosmopolita, universalista, racionalista, progressista dos neokantianos. Vocês devem estar se perguntando aonde quero chegar. Na verdade, assim como o sentido social de uma óbra de filosofia pode se inverter dessa maneira (e a maior parte das obras, Descartes, Kant, ou mesmo Marx, estão sempre mudando de sentido, cada geração de comentadores vem destruir a leitura da geração precedente), do mesmo modo, uma prática esportiva que, em sua definição técnica, “intrínseca”, sempre apresenta uma grande elasticidade, logo, oferece uma grande disponibilidade para usos totalmente diferentes, até opostos; também pode mudar de sentido. Mais exatamente, o sentido dominante, isto é, o sentido social que lhes é atribuído por seus usuários sociais dominantes (numérica ou socialmente) pode mudar: com efeito, é freqüente que no mesmo momento, e isso é válido também para uma obra filosófica, um esporte receba dois sentidos muito diferentes, e que o programa objetivado de prática esportiva designado por um termo como corrida a pé ou natação, ou mesmo tênis, rúgbi, luta, judô, seja um alvo de lutas — pelo próprio fato de sua polissemia objetiva, de sua indeterminação parcial, que o torna disponível para vários usos — entre pessoas que se opõem quanto ao uso verdadeiro, do bom uso, da boa maneira de. exercitar a prática proposta pelo programa objetivado, de prática considerado (ou, no caso de uma obra filosófica ou musical, pelo programa objetivado de leitura ou de execução). Num dado momento, um esporte é um pouco como uma obra musical: uma partitura (uma regra do jogo, etc.), mas também interpretações concorrentes (e todo um conjunto de interpretações do passado sedimentado); e é com tudo isso que cada novo intérprete se defronta, mais inconsciente do que conscientemente, quando propõe “sua” interpretação. Seria preciso analisar, nessa lógica, os “retornos” (a Kant, aos instrumentos de época, ao boxe francês, etc.). Eu dizia que o sentido dominante pode mudar. De fato, principalmente porque ele se define por oposição a esse sentido dominante, um novo tipo de prática esportiva pode ser construído com elementos do programa dominante de prática esportiva que estavam em estado virtual, implícito ou recalcado (por exemplo, toda a violência que estava excluída de um esporte por imposição do fair play). O princípio dessas reviravoltas, que apenas a lógica da distinção não basta para explicar, certamente reside na reação dos novatos, e das disposições constituídas socialmente que eles introduzem no campo, contra o, complexo socialmente marcado que um esporte constitui, ou uma obra filosófica, como programa objetivado de prática, mas socialmente realizado, encarnado em agentes socialmente marcados, logo, marcados pelas características sociais desses agentes, pelo efeito de apropriação. Se, para a visão sincrônica, tal ou tal desses programas, aquele programa que um nome de esporte designa (luta, equitação, tênis) ou um nome próprio de filósofo ou compositor, ou um nome de gênero, ópera, opereta, teatro de bulevar, ou mesmo um estilo, realismo, simbolismo, etc., parece diretamente ligado às disposições inscritas nos ocupantes de uma determinada posição social (é, por exemplo, o vínculo entre a luta ou o rúg- bi e os dominantes), uma visão diacrônica pode levar a uma representação diferente, como se o mesmo objeto oferecido pudesse ser apropriado por agentes dotados de disposições muito diversas, em suma, como se qualquer um pudesse se apropriar de qualquer programa e qualquer programa pudesse ser apropriado por qualquer um. (Esse saudável “relativismo” pelo menos tem a virtude de prevenir contra a tendência, recorrente em história da arte, de estabelecer um vínculo direto entre as posições sociais e as tomadas de posição estéticas, entre o “realismo”, por exemplo, e os dominados, esquecendo que as mesmas disposições poderão, por referência a espaços de oferta diferentes, exprimir-se em tomadas de posição diferentes.) Na verdade, a elasticidade semântica nunca é infinita (basta pensar no golfe e na luta), e sobretudo, em cada momento, as escolhas entre as diferentes possibilidades oferecidas nunca se distribuem ao acaso, ainda que, quando o espaço dos possíveis é muito restrito (por exemplo, o jovem Marx contra o Marx da maturidade), a relação entre as dis-posições e as tomadas de posição seja muito obscura, pelo fato de as disposições, que podem projetar diretamente sua estrutu-ra de exigências em universos mais abertos, menos codificados, serem obrigadas, nesse caso, a se limitar a escolhas negativas ou ao menos ruim. Acho possível dizer que as disposições associadas às diferentes posições no espaço social, e em parti-cular as disposições estruturalmente opostas ligadas às dis-posições opostas nesse espaço, sempre encontram um meio de se exprimir, mas, às vezes, sob a forma irreconhecível das oposições específicas, ínfimas e imperceptíveis se não tivermos as categorias de percepção adequadas, que organizam um campo determinado num dado momento. Não há nada que impeça pensar que as mesmas disposições que levaram Heidegger a uma forma de pensamento “revolucionário conser-vador” teriam podido, em referência a outro espaço de oferta filosófica, levá-lo até o jovem Marx; ou que a mesma pessoa (mas ela não seria a mesma) que vê hoje no aikidô uma maneira de escapar do judô, naquilo que ele tem de objetivamente limitado, competitivo, pequeno-burguês — é evidente que estou falando do judô socialmente apropriado —, teria exigido, há trinta anos, mais ou menos a mesma coisa do judô.
Eu gostaria ainda de lembrar, mesmo superficialmente, todo o programa de pesquisas que está implicado na idéia de que um campo de profissionais da produção de bens e serviços esportivos está se constituindo progressivamente (entre os quais, por exemplo, os espetáculos esportivos), no interior do qual se desenvolvem interesses específicos, ligados à concorrência, relações de força específica, etc. Eu me contentarei em mencionar, entre outras, uma conseqüência da constituição desse campo relativamente autônomo, a saber, o contínuo aumento da ruptura entre profissionais e amadores, que vai pari passu com o desenvolvimento de um esporte-espetáculo totalmente separado do esporte comum. É notável que se observe um processo semelhante em outras áreas, particularmente na dança. Nos dois casos, a constituição progressiva de um campo relativamente autônomo reservado a profissionais é acompanhada de uma despossessão dos leigos, pouco a pouco reduzidos ao papel de espectadores: por oposição à dança camponesa, em geral associada a funções rituais, a dança cortesã, que se torna espetáculo, supõe conhecimentos específicos (é preciso conhecer o compasso e os passos), portanto, mestres de dança são levados a enfatizar a virtuosidade técnica e a operar um trabalho de explicitação e de codificação; a partir do século XIX, aparecem dançarinos profissionais, que se apresentam nos salões diante de pessoas que praticam e ainda podem apreciar como conhecedores; depois, por fim, dá-se a ruptura total entre os dançarinos estrelas e espectadores sem prática reduzidos a uma compreensão passiva. A partir de então, a evolução da prática profissional depende cada vez mais da lógica interna do campo de profissionais, sendo os não-profissionais relegados à categoria de público cada vez menos capaz da compreensão dada pela prática. Em matéria de esporte, estamos freqüentemente, na melhor das hipóteses, no estágio da dança do século X3X, com profissionais que se apresentam para amadores que ainda praticam ou praticaram; mas a difusão favorecida pela televisão introduz cada vez mais espectadores desprovidos de qualquer competência prática e atentos a aspectos extrínsecos da prática, como o resultado, a vitória. . O que acarreta efeitos, por intermédio da sanção (financeira ou outra) dada pelo público, no próprio funcionamento do campo de profissionais (como a busca de vitória a qualquer preço e, com ela, entre outras coisas, o aumento da violência).
Termino por aqui, já que o tempo que me foi concedido está praticamente esgotado. Indico o último ponto em alguns segundos. Falei inicialmente dos efeitos da divisão do trabalho entre os teóricos e os práticos no interior do campo científico. Penso que o esporte é, com a dança, um dos terrenos onde se coloca com acuidade máxima o problema das relações entre a teoria e a prática, e também entre a linguagem e o corpo. Certos professores de educação física tentaram analisar o que é, por exemplo, para um treinador ou para um professor de música comandar o corpo. Como ensinar a alguém, isto é, a seu corpo, a corrigir seu gesto? Os problemas colocados pelo ensino de uma prática corporal me parecem encerrar um Conjunto de questões teóricas de importância capital, na medida em que as ciências sociais se esforçam por fazer a teoria de condutas, que se produzem, em sua grande maioria, aquém da consciência, que se aprendem, pode-se dizer, por uma comunicação silen-ciosa, prática, corpo a corpo. E a pedagogia esportiva talvez seja o terreno por excelência para colocar o problema que em geral é exposto no terreno da política: o problema da tomada de consciência. Há um modo de compreensão totalmente particular, em geral esquecido nas teorias da inteligência, e que consiste em compreender com o corpo. Há uma infinidade de coisas que compreendemos somente com nosso corpo, aquém da consciência, sem ter palavras para exprimi-lo. O silêncio dos esportistas de que falei no início deve-se em parte, quando não se é profissional da explicitação, ao fato de haver coisas que não se sabe dizer, e as práticas esportivas são essas práticas nas quais a compreensão é corporal. Em geral, só se pode dizer: “Olhe, faça como eu”. Nota-se com freqüência que os livros escritos por grandes dançarinos não transmitem quase nada daquilo que fez o “gênio” de seus autores. E Edwin Denby, pensando em Théophile Gautier ou em Mallarmé, dizia que as observações mais pertinentes sobre a dança partem menos dos dançarinos, ou mesmo dos críticos, do que dos amadores esclarecidos. O que se compreende se sabemos que a dança é a única das artes eruditas cuja transmissão — entre dançarinos e público, mas também entre mestre e discípulo —é inteiramente oral e visual, ou melhor, mimética. Isso em razão da ausência de qualquer objetivação numa escritura adequada (a ausência do equivalente da partitura, que permite distinguir claramente entre partitura e execução, leva a identificar a obra à performance, a dança ao dançarino). Poderíamos, nessa perspectiva, tentar estudar o que foram os efeitos, tanto na dança como no esporte, da introdução da filmadora. Uma das questões colocadas é saber se é preciso passar pelas palavras para ensinar determinadas coisas ao corpo, se, quando se fala ao corpo com palavras, são as palavras precisas teoricamente, cientificamente, aquelas que fazem o corpo compreender melhor ou se, às vezes, palavras que não têm nada a ver com a descrição adequada do que se quer transmitir não são mais bem compreendidas pelo corpo. Refletindo sobre essa compreensão do corpo, talvez fosse possível contribuir para uma teoria da crença. Vocês vão pensar que procedo com botas de sete léguas. Penso que há uma ligação entre o corpo e o que em francês nós chamamos de esprit de corps. Se a maioria das organizações, seja a Igreja, o Exército, os partidos, as indústrias, etc., dão tanto espaço às disciplinas corporais, é porque, em grande parte, a obediência é a crença, e porque a crença é o que o corpo admite mesmo quando o espírito diz não (poderíamos, nessa lógica, refletir sobre a noção de disciplina). Talvez seja refletindo sobre o que o esporte tem de mais específico, isto é, a manipulação regrada do corpo, sobre o fato de o esporte, como todas as disciplinas em todas as instituições totais ou totalitárias, os conventos, as prisões, os asilos, os partidos, etc., ser uma maneira de obter do corpo uma adesão que o espírito poderia recusar, que se conseguiria compreender melhor o uso que a maior parte dos regimes autoritários faz do esporte. A disciplina corporal é o instrumento por excelência de toda espécie de “domesticação”: sabe-se o uso que a pedagogia dos jesuítas fazia da dança. Seria preciso analisar a relação dialética que une as posturas corporais e os sentimentos correspondentes: adotar certas posições ou certas posturas é, sabe-se desde Pascal, induzir ou reforçar os sentimentos que elas exprimem. O gesto, segundo o paradoxo do comediante ou do dançarino, reforça o sentimento que reforça o gesto. Assim se explica o lugar destinado por todos os regimes de caráter totalitário às práticas corporais coletivas que, simbolizando o social, contribuem para somatizá- lo e que, pela mimesis corporal e coletiva da orquestração social, visam reforçar essa orquestração. A História do soldado lembra a velha tradição popular: fazer alguém dançar significa possuí-lo. Os “exercícios espirituais” são exercícios corporais, e inúmeros treinamentos modernos são uma forma de ascese no século.

Há uma contradição, que sinto muito fortemente, entre o que quero dizer e as condições nas quais digo isso. Teria sido preciso que eu tomasse um exemplo absolutamente preciso e o aprofundasse; ora, devido à aceleração imposta a meu discurso pelas pressões do horário, vocês podem ter a impressão de que propus grandes perspectivas teóricas quando minha intenção era totalmente inversa...

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Praxiologia Motriz: construção de um novo olhar dos jogos e esportes na escola

Motriz, Rio Claro, v.H n.2 p.113-120, mai./ago. 2005
Praxiologia Motriz: construção de um novo olhar dos jogos e esportes na escola
João Francisco Magno Ribas Departamento de Desportos Coletivos - Universidade Federal de Santa Maria RS
Resumo: A Praxiologia Motriz, idealizada pelo professor francês Pierre Parlebas no final da década de 60, aos poucos vem mostrando novas e relevantes reflexões para a Educação Física. No presente artigo, trato de apresentar pontos relativos à Praxiologia que poderão contribuir para o ensino dos jogos e esportes na Educação Física Escolar. Assim, divido o texto da seguinte forma: Melhor compreensão do que se está ensinando; ensino com mais consistência e sentido; transferência de estruturas e lógicas de atividades; organização e seleção de conteúdos. Na última parte do texto apresento uma síntese do que realizei no estudo de doutoramento.
Palavras-chave: Praxiologia motriz. Aprendizado. Educação. Ensino.
Motor praxiology: the construction of a new looking about games and scholastics sports
Abstract: The Motor Praxiology, idealized for French teacher Pierre Parlebas in the end of 60's, bit by bit is showing new and relevant reflections for the Physical Education. In the present article, I present points related to Praxiology, which might contribute to the teaching of games and sports in Scholastic Physical Education. Thus, I divide the paper in the following form: Better comprehension from what it is teaching; teaching with more consistency and meaning; transference of structures and logics of activities; organization and selection of contents. In the last part of the text, I present a synthesis about my doctorate work.
Key Words: Motor Praxiology. Learning. Education. Teaching.
Introdução
A Praxiologia Motriz se constitui em um recente e relevante conhecimento acerca dos jogos e esportes. O ponto de partida da teoria da ação motriz consiste em estudar e entender a essência dos jogos e esportes, independentemente de seus atores ou contexto. É como o conhecimento das notas musicais que norteia e dá rumo ao ensino da música.
Mas aprender as notas musicais é o suficiente para formar um bom músico ou um licenciado em música? Claro que não - e por isso se faz necessário o estabelecimento de uma meta, contexto, projeto, enfim, um sentido para tudo. Já antecipo estas questões ao leitor para que entenda que o conhecimento praxiológico não tem a intenção de substituir, concorrer e tampouco se constitui em uma nova abordagem metodológica da Educação Física. Porém, se constitui em um importante e, no meu entender, fundamental, olhar dos jogos e esportes.
Assim, parto do princípio de que a teoria da ação motriz consiste em um instrumento de compreensão do mundo dos jogos e esportes, essencialmente do estudo e compreensão da lógica interna. Como se utilizássemos uma objetiva mais precisa em uma câmera fotográfica. Obviamente que cada câmera tem a sua especialidade e peculiaridade. Uma lente mais precisa para um determinado e específico tipo de foto dará melhores formas, cores e precisão à fotografia. Assim, uma de minhas hipóteses é que, com pequenos ajustes e adequações, o conhecimento praxiológico poderá complementar qualquer uma das abordagens que temos atualmente em nossa área, fazendo com que o profissional aproxime ainda mais seus propósitos pedagógicos à prática.
Pierre Parlebas comentou em uma palestra no V Seminário Internacional de Praxiologia Motriz, que aconteceu de 29 e 30 de outubro de 2001 em A Coruna, que este conhecimento busca 'desvelar o mundo dos jogos, esportes e outras práticas motrizes a partir do estudo da lógica interna dessas atividades '. Essa disciplina, que também propõe uma nova terminologia, trabalha com a criação de instrumentos e métodos para conhecer o mundo das atividades físicas, desde a lógica interna, mas em consonância e compreendendo o sentido com base na lógica externa. Buscando aclarar algumas relações entre Educação Física Escolar e Praxiologia Motriz, serão apresentadas definições e reflexões que justificam a necessidade de estudos que relacionem ambos os temas.
O primeiro ponto a ser destacado é que a Praxiologia Motriz define um objeto próprio da Educação Física escolar, no caso, a conduta motriz. Parlebas (1996) propõe esta terminologia, com o intuito de delimitar a área de atuação no contexto escolar, de forma que nenhuma outra área possa disputar-lhe e tampouco definir seus rumos e objetivos. A definição de conduta motriz não está reduzida ao conjunto de manifestações ou fatos observáveis. O autor entende a conduta motriz como sendo uma organização do comportamento motor, mas com significados.
Quando assistimos a uma partida de futebol, não estamos vendo somente vinte jogadores tentando fazer gol e defendendo o seu território e dois goleiros evitando que o adversário faça o gol. Existe um sentido para tudo isso, um significado, intenção, filosofia de jogo, um motivo para a competição, história dos jogadores, enfim, uma série de fatos que dão significados a essas ações. Dependendo do jogo, do adversário, do tempo, da relevância da competição, do salário, de satisfação pessoal, é que será possível determinar o grau de envolvimento e participação na partida. As ações de jogo carregadas de significados são entendidas por Parlebas como condutas motrizes. During (1992) complementa ainda mais esta idéia destacando que toda conduta motriz se manifesta por um comportamento motor, mas não se reduz a este.
A Educação Física Escolar é entendida como um campo da pedagogia das condutas motrizes, ou seja, uma prática de intervenção que exerce influência sobre as condutas motrizes dos participantes em função das normas educativas implícitas ou explícitas (PARLEBAS, 1999; p. 119). Tentaremos esclarecer um pouco mais esta afirmação.
“O professor de Educação Física trabalha com as condutas motrizes de seus alunos. ” O que Parlebas quis dizer com isso? Que o professor deverá enfatizar em suas aulas de Educação Física aspectos relativos à cultura corporal de movimento, ou seja, a ênfase deverá ser na pedagogia do movimento e não na psicologia ou na filosofia. Essas áreas permeiam, sustentam e obviamente auxiliam o profissional em sua prática pedagógica. Entretanto, o ponto de partida e chegada são as manifestações da cultura corporal de movimento (jogos, esportes, atividades didáticas e atividades livres), onde, de acordo com Bracht (1997) o saber que trata a Educação Física é “a) ser um saber que se traduz num saber fazer, num realizar "corporal"; b) ser um saber sobre este realizar corporal”.
Para isso, o professor deverá conhecer e compreender melhor o que quer ensinar, no caso, os jogos, esportes, atividades didáticas e atividades livres. Estrutura geral das atividades, tipos de interações, características essenciais, processos de tomadas de decisões, entre outros conceitos, irão auxiliar o professor no desenvolvimento do saber da Educação Física, tanto na dimensão do “saber fazer” como no “saber sobre o realizar corporal’. Será que isso está claro em nossa prática pedagógica quando nos deparamos com uma grande quantidade de práticas da cultura corporal de movimento? Será que temos instrumentos suficientes para fazermos esta mediação, organização, sistematização, reflexão e síntese das distintas práticas da cultura corporal de movimento?
Sem dúvida nenhuma, a Praxiologia Motriz não resolve definitivamente o problema. Mas, de forma muito original e consistente, aponta novos horizontes para essa questão. Não adianta insistir em criticar as práticas basicamente esportivas e desenvolver jogos com a mesma estrutura. Nem falar de cooperação trabalhando práticas de oposição. Ou então, possibilitar vivências diferenciadas de movimentos sem modificar sua lógica e sim o tipo de atividade, como acontece com os esportes coletivos que, praticamente predominam nos programas de Educação Física.
São questões como essas que debateremos na seqüência, divididas em quatro subtemas, no caso: compreender melhor o que se está ensinando; ensinar com mais consistência e sentido; transferência de estruturas e lógicas de atividades; organizar e selecionar conteúdos. Muito provavelmente, em determinados momentos, não conseguirei acompanhar esta divisão que estabeleci. Assim, por exemplo, quando estiver falando de transferência de estrutura, também poderei incluir na discussão a organização de conteúdos e de seus significados. Na última parte do artigo comentarei os resultados do estudo de doutoramento onde irei ilustrar um pouco melhor essa possibilidade de inserção das reflexões da Praxiologia Motriz no contexto escolar.
Compreender melhor o que se está ensinando
Muitas vezes o professor ensina o futebol repetindo os exercícios que estão nos livros, que aprendeu no curso, que trocou com o colega e pouco sabe de alguns princípios da Praxiologia Motriz que poderiam auxiliá-lo (e aos alunos) na criação dessas aulas. A lógica do futebol não requer uma perfeita execução de movimentos. Claro, existem "Rivaldos e Ronaldos'' que têm muita precisão, sabem posicionar-se no momento certo, efetuar verdadeiros malabarismos com a bola, enfim, jogar com inteligência. Mas por outro lado, será que passariam por nossos antigos (creio e desejo eu que sejam antigos) testes de execuções corretas do chute, recepção ou qualquer outro elemento técnico?
Será que não é o fato de eles terem mais alternativas técnicas, maior capacidade de avaliar situações rapidamente e tomar decisões que os difere dos demais atletas? Será que não é aquela forma especial que cada jogador possui e que foge dos padrões que dá essa excepcional condição de jogo? Não seria mais interessante que o aluno buscasse entender o futebol e todas as suas dimensões e, em se tratando da Praxiologia Motriz, compreender sua estrutura e lógica interna de funcionamento, assim como suas possibilidades de participar nesta atividade de forma criativa, inteligente e interessante?
Resumidamente, podemos dizer que o futebol é um jogo competitivo onde duas equipes enfrentam-se para fazer o gol. É jogado com uma bola que poderá ser tocada com qualquer parte do corpo, menos com os membros superiores, exceto o goleiro dentro de sua área de jogo - que poderá utilizar as mãos. Estão presentes a cooperação e a oposição, ou seja, minha ação motriz depende da ação de meus companheiros e dos adversários. Isso quer dizer que a todo o momento o participante dessa modalidade deverá estar tomando decisões em função de seus companheiros de equipe e de seus oponentes.
O processo de leitura da informação vinda do companheiro e do adversário é fundamental. O participante de modalidades com essas características deverá, a todo momento, ler e interpretar as informações de seu companheiro e adversário e, por outra via, também é portador de informações. Essas deverão ser claras e legíveis para seu companheiro, e totalmente obscuras para o adversário. “Estar no lugar certo na hora certa" ou "conhecer os atalhos do campo", acho que já escutamos essas expressões algumas vezes. Na interpretação praxiológica seria aquele jogador que consegue ler as informações do adversário e posicionar-se da melhor forma possível, antecipando-se a seus adversários e ocupando os melhores espaços. Será que foi assim que aprendemos a jogar handebol e futebol em nossas aulas? Será que é dessa maneira que estamos ensinando?
Assim, entendendo melhor a dinâmica da atividade o professor saberá passar essas informações de forma mais precisa e eficaz. Inclusive, os próprios participantes poderão criar a sua forma de participação.
Essa compreensão da lógica interna das práticas motrizes deverá ser compartilhada e construída com os alunos. A lógica do futebol não é um conhecimento exclusivo do professor, como vimos no exemplo anterior. Na medida do possível, o aluno poderá entender cada vez melhor a lógica interna e o mundo dos jogos, esportes e outras práticas motrizes. Assim, poderá opinar sobre uma determinada modalidade ou até envolver-se em uma análise mais ampla, incluindo a lógica externa, que abrange problemas de violência no esporte, mídia, política e interesses que rodeiam esse espetacular mundo.
Na prática, significa construir com os alunos novos critérios para entender o mundo dos jogos, esportes e outras
atividades físicas. Como no exemplo do futebol, o aluno poderá perceber que esta modalidade possui uma característica de cooperação entre companheiros, mas existe a lógica externa que modifica toda dinâmica desse esporte. Os atacantes recebem melhores salários que os defensores. Os patrocinadores, em muitos casos, determinam o número de apresentações de suas estrelas, influenciando na própria decisão do treinador de encontrar um estilo próprio de jogo. Quando o tema é a seleção brasileira, a discussão ainda é mais complexa já que envolve um número enorme de elementos externos à lógica interna da atividade e que dá um novo sentido ao futebol.
Congruência entre objetivos do ensino e situações pedagógicas propostas
Este ponto nos leva a comentar uma vez mais a relação teoria-prática em aulas de Educação Física. Será que estamos conseguindo coerência nesta relação? O professor consegue atingir seus propósitos com as alternativas pedagógicas que possui? Obviamente não temos as respostas para essas questões, mas gostaríamos de comentar algumas situações mais específicas em nossa área onde o professor se depara com dificuldades. Usaremos alguns argumentos e caminhos dessa nova disciplina.
Outro dia, durante uma reunião com os professores da Rede Municipal de Americana, pensávamos em estratégias para quebrar o clima de competição nos Jogos Escolares Municipais. Pensamos na queimada, rouba-bandeira e em outros jogos tradicionais. Entretanto, ao analisar a lógica interna das atividades que optamos, constatamos que eram as mesmas do futebol ou handebol. Percebemos que se incluíssemos essas atividades estaríamos apenas esportivizando esses jogos, ou seja, dando regras mais fixas e definitivas para incluí-los em um evento esportivo. Assim, concluímos que se quiséssemos incluir atividades sem a lógica competitiva, teríamos que escolher outro grupo de atividade, no caso, as cooperativas. Mesmo neste grupo podemos encontrar atividades que tenham como lógica a cooperação e a competição. Mas já chegamos mais perto. A solução foi realizar uma tarefa para os alunos de todas as escolas (um grupo de cada escola), onde um dependesse do outro para solucioná-la. Solicitou-se a criação de uma coreografia e propôs-se uma mesma música para todos. No dia da apresentação, os grupos atuaram juntos, ocupando lugares variados na quadra. Claro que essa excelente idéia saiu desses interessados colegas da rede municipal de Americana. O pouco que pude fazer foi, a partir de critérios da Praxiologia Motriz, buscar maior proximidade entre proposta e atividade.
Outro caso muito freqüente se dá com os jogos cooperativos. Normalmente confunde-se jogos cooperativos com jogos tradicionais. Alguns professores buscam trabalhar atividades cooperativas incluindo atividades como o rouba- bandeira e a queimada. Temos ainda outra opção, o gato e o rato. Segundo o próprio Parlebas, o jogo tradicional é o âmbito menos conhecido de todos porque suas regras estão configuradas em função de uma realidade e cultura. Não são padronizadas para todo o mundo como é o caso dos esportes, ou seja, em cada realidade encontramos formas diferentes de organizar o jogo, mesmo os mais conhecidos como o rouba- bandeira e a queimada.
Uma vez mais o professor talvez não consiga atingir seus propósitos porque, segundo os critérios praxiológicos, nenhuma das atividades anteriores estaria tratando de possibilitar somente a cooperação. No caso das duas primeiras, o rouba-bandeira e a queimada, os critérios da Praxiologia mostram que são atividades cooperativas e de oposição, ou seja, a competição está presente. Já a brincadeira do gato e rato também se constitui em uma atividade competitiva de cooperação e oposição, porém, existe grande alternância de funções (gato, rato e roda) que descaracteriza a competitividade entre grupos e pessoas como acontece no rouba-bandeira e queimada, onde existe uma divisão em grupos similares aos esportes coletivos. É importante destacar também que poderei estar redondamente enganado se as normas dessas atividades não forem aquelas que normalmente conhecemos, alterando assim as características da lógica interna da atividade. Por isso a necessidade de sempre estarmos atentos às normas que regem o jogo.
Assim, não garantimos nossos objetivos simplesmente substituindo jogos por esportes e vice-versa. O jogo, por si só, não garante a construção de uma boa proposta pedagógica. Existem jogos competitivos, violentos e preconceituosos. Essas leituras é que devemos fazer também, assim como normalmente é feito com o esporte.
Transferência de estruturas e lógicas de atividades
A idéia da compreensão da lógica interna como vimos no exemplo do futebol, facilita a transferência da aprendizagem para outras atividades. O basquetebol, o handebol e o voleibol possuem a mesma estrutura de jogo, mudando apenas a forma de participação na atividade. Poucas vezes lembramos disso em aulas de Educação Física. Sempre trabalhamos uma nova modalidade, e mais, a iniciação dessa nova modalidade.
O sistema de classificação, o CAI1, é uma das grandes referências para caracterizar cada âmbito das atividades e possibilitar a transferência de estrutura. Conversando com os meus companheiros de laboratório de Praxiologia, percebi a possibilidade de facilitar um pouco mais essa classificação para o contexto escolar. Tentarei mostrar minha idéia nos próximos parágrafos, calcada em Parlebas (1991), em um texto apresentado pelo professor Lavega Burgués (2000) no V Seminário Internacional de Praxiologia Motriz.
O CAI, parte de dois critérios, um referente à forma de interação e o outro com relação ao meio físico. Para esta comunicação utilizaremos somente o primeiro critério para atividades desenvolvidas em meio estável (padrão), por caracterizar melhor o meio educativo. As atividades na natureza (meio instável) merecem outro texto. Assim, no que tange à forma de interação, podemos chegar a quatro grupos distintos: atividades sem interação motriz (ou psicomotriz), atividade com interação de oposição, atividade de interação de cooperação e atividade de interação de oposição e cooperação, essas últimas denominadas sociomotrizes.
Nas atividades sem interação ou psicomotriz, pode-se dizer que a ênfase deverá estar centrada na própria atividade. O praticante deverá estar totalmente envolvido com sua tarefa e buscar resolver o problema ou propósito, sempre centrando a atenção no que está fazendo. Essa orientação vai desde uma corrida até o malabarismo com três bolas. Claro que o foco da atenção dependerá da atividade, alguns terão que aprender a lidar com materiais, como é o caso dos jogos malabares, outros, melhorar índices e performances, no caso dos velocistas, ou então, a consciência de determinadas partes do corpo, no caso de exercícios para conscientizar a postura.
Nas atividades sociomotrizes entra o processo de informação com relação aos outros. No caso das atividades de oposição, a leitura deverá ser do adversário, ou seja, sempre o praticante deverá agir em relação ao seu oponente. A todo instante, ele deverá interpretar a ação do adversário e buscar a antecipação dessas ações para superá-lo. A sua informação deverá ser a mais obscura possível, ou seja, quanto menor a clareza das informações para o seu adversário, maiores serão as possibilidades de êxito. Em síntese, o participante deverá ser o mais imprevisível possível para o seu adversário. Tentará interpretar o mais rápido possível as ações deste, buscando a antecipação, e colocará em prática a sua proposta de jogo. Essa informação vale para esportes de raquetes- simples como o tênis e tênis de mesa, peteca-simples, lutas,
1 Forma como ficou conhecido o sistema de classificação dos jogos/esportes de Parlebas, justamente porque se refere as iniciais dos critérios desta classificação, no caso, Cooperação, Adversário e Incerteza.
Praxiologia motriz e a Educação Física Escolar
pega-rabo (um contra um), briga de galo, desequilíbrio (um contra um), entre outros mais.
Nas atividades cooperativas também existem os processos de informações, entretanto, funcionam de forma totalmente contrária. Se no primeiro caso a imprevisibilidade da ação era fundamental, neste grupo ocorre o oposto. O praticante deverá ser o mais previsível possível com as suas ações para poder articular com as ações de seu(s) companheiro(s). O colega deverá saber o que irei fazer porque já não existe mais a “minha” ação e sim, a “nossa” ação. Quanto melhor a integração (facilitação de leituras) entre os participantes, melhores são as chances de êxito na atividade. Essa estrutura poderá ser encontrada em apresentações de ginástica rítmica (grupo), nos revezamentos (em raias separadas), no jogo da capoeira, no frescobol, jogos cantados em roda, entre muitos outros jogos e esportes.
Por fim, temos as atividades que conjugam a cooperação e oposição. Neste caso, os dois processos de informações comentados anteriormente ocorrem concomitantemente. No instante em que o participante lê a informação do(s) adversário(s) e de seu(s) companheiro(s), busca deixar clara as informações para seu(s) companheiro(s) e tornar obscuras para o(s) adversário(s). Desse processo de interação, o participante deverá tomar um grande número de decisões, como deslocar-se para frente, para trás, passar ou chutar a gol, trocar de espaço com o companheiro, defender, fazer cobertura etc. Os tipos de decisões poderão ser finitas, impossível é prever a sua seqüência. O desafio das equipes é justamente antecipar a leitura do adversário e ludibriá-lo com informações incorretas e imprecisas. Neste grupo temos o futebol, handebol, voleibol, basquetebol, rouba-bandeira, queimada, pega-pega, pega-corrente, taco entre muitas atividades. Logo, as informações são padrões para todas. Pode-se aproveitar a estrutura de uma para chegar à outra, evidenciando, obviamente, as diferenças e variantes.
Poderíamos destrinchar ainda mais estes elementos da Praxiologia, mas não é nossa proposta neste momento. O que quis mostrar até aqui é que existem instrumentos de análise da Praxiologia Motriz que facilitam este processo de transferência de estruturas. O CAI é um deles, e esse tipo de análise que acabo de apresentar é uma das possibilidades. Ou seja, estamos apenas engatinhando neste caminho da reflexão sobre estruturas de atividades. Como diz o próprio autor, faltam investigações para desvelar este mundo.
Ensinar os jogos de forma desconectada de outras vivências motrizes é um dos maiores erros que cometemos hoje em nossas aulas de Educação Física. Quantas horas são perdidas ensinando o passe, a recepção, os deslocamentos, sem ensinar a estrutura geral da atividade e as possibilidades de criar formas de participação a partir de elementos básicos da lógica interna da atividade? Talvez possamos centrar um pouco mais esta questão no processo de organização e seleção de conteúdos, tema que será desenvolvido a seguir.
Organizar e selecionar conteúdos
Este ponto se refere justamente ao tema central de meu estudo de doutorado. Uma vez considerada a proposta pedagógica da escola, do município, dos PCN, incluindo aspectos relativos à realidade escolar e a própria visão de mundo do professor, é chegada a hora de colocar a mão na massa. Por onde começar? Do conhecido para o desconhecido, como propõe o Construtivismo? Do simples para o complexo? E que referência temos para desenvolver estas atividades com relação às suas características? Temos que trabalhar somente com jogos coletivos? Ou esportes? Ou atividades cooperativas?
Neste instante, a partir do olhar praxiológico, entendo que estamos ensinando em nossas aulas atividade por atividade. Uma boa metáfora, a mais utilizada pelos praxiólogos, se refere à música. Nossa situação na Educação Física é equiparada a um aluno da teoria musical que tivesse que aprender música por música.
Isso me faz lembrar de quando aprendi a primeira música no violão, 'Pra não dizer que não falei das flores ', de Geraldo Vandré. Quantas pessoas não iniciaram o aprendizado de um instrumento, nesta época, por esta música? Além da importância política, havia outro elemento que atraia os aprendizes, principalmente de violão: é que utilizávamos apenas duas notas musicais de simples execução (lá menor e sol). O professor de música poderá aproveitar essa questão contextual, e creio que faça isso, para introduzir novas notas musicais, ritmos e novas músicas, e não para ensinar música por música. Por conta da reflexão praxiológica, na Educação Física Escolar, pode-se afirmar que ainda estamos ensinando atividade por atividade e não a gramática do jogo/esporte2.
Os exemplos e as metáforas são infinitos, e junto com estas reflexões cresce o número de questões, como por exemplo: como organizar e selecionar conteúdos em um grande universo de práticas físicas?
A Praxiologia Motriz sugere caminhos para uma resposta mais consistente a essa questão. Um deles poderá ser
2 Os professores do laboratório de Praxiologia Motriz, Francisco Lagardera e Pere Lavega, utilizam esta expressão para sustentar a posição que os jogos e esportes são possuidores de uma gramática muito singular, que deve ser
estruturado a partir do Sistema de Classificação que foi comentado no tópico anterior. A partir do CAI, irei situar um pouco mais a questão para discutir este tema, mas, conseqüentemente, estarei recortando e reduzindo a ação pedagógica.
Com base em uma das idéias do Construtivismo, partir do conhecido para o desconhecido, o educador poderá deparar-se com um problema: Até onde podemos conhecer esse universo de atividades? O que podemos conhecer além de atividades? Vamos ver a que rumos o conhecimento praxiológico poderá encaminhar a referida questão.
Os alunos de uma determinada realidade vivenciam, com muita freqüência, atividades de voleibol, futebol, funk, taco e peteca (jogo sem competição). A que grupo pertence essas atividades de acordo com o CAI?
•         Cooperação e oposição: futebol, voleibol e taco.
•         Cooperação: peteca e funk.
O sistema de classificação está composto por oito grupos de atividades. Digamos que este professor optou por cinco grupos. Quais os caminhos que já poderia trilhar com base no CAI? Vejamos:
•         Ensinar as principais características das atividades de cooperação e oposição. Ou seja, a partir do conhecido, o aluno iria identificar algumas características de lógica interna de cada grupo, como por exemplo, tomada de decisão nas atividades de cooperação-oposição ou a necessidade de ler o movimento do companheiro para realizar uma atividade cooperativa.
•         Construir e criar outras atividades com os alunos com características similares, mostrando o número infinito do universo dos jogos, esportes e outras práticas físicas.
•         Ensinar atividades com características estruturais diferentes, como atividades de oposição e atividades sem interação (atividades psicomotrizes). Este grupo de atividade poderá apresentar peculiaridades diferentes e até opostas aos já conhecidos.
Exemplo de investigação no âmbito educacional
Apresentarei, de forma resumida, minha tese de doutorado orientada pelo professor Ademir De Marco, desenvolvida na UNICAMP em conjunto com o Grupo de Estudos Praxiológicos, do Laboratório de Praxiologia Motriz do Instituto Nacional de Educação Física da Cataluna, Centro de Lleida, Espanha, e defendido no dia 11 de março de 2002 (RIBAS, 2002).
O objetivo geral do presente trabalho consiste em avaliar a Educação Física Escolar na ótica da Praxiologia Motriz. Para atingir este objetivo a questão ganhou maior especificidade, e
originou três objetivos: analisar, com lentes praxiológicas, a estrutura dos blocos de conteúdos e das atividades sugeridas em cada bloco para o Ensino Fundamental; com base nas análises das atividades e no conhecimento praxiológico, interpretar os alicerces teóricos da área de Educação Física dos PCN para o Ensino Fundamental; e, por fim, elaborar uma proposta de conteúdos de Educação Física para o referido documento.
Foram utilizados dois instrumentos da teoria da ação motriz para orientar os objetivos propostos. O primeiro está relacionado à forma de interação dos participantes (sem interação, cooperação, oposição e oposição-cooperação) e ao meio de prática (estável e instável). A outra matriz de análise organiza as grandes situações motrizes da Educação Física, no caso, jogos tradicionais, esportes, exercícios didáticos e atividades livres.
Em relação ao primeiro objetivo, análise dos blocos e propostas de conteúdos, foi possível constatar: o descuido que ainda existe no trato com os jogos tradicionais; a força com que é enfatizado o esporte; imprecisão terminológica; concentração de atividades com estruturas similares, como os jogos de cooperação-oposição e, conseqüentemente, ausência de práticas do tipo cooperativa e as atividades na Natureza.
Por outra via pode-se verificar que existe uma proximidade da concepção de cultura corporal às bases teóricas antropológicas que deram origem à teoria da ação motriz. Identificou-se a existência de uma lacuna entre as bases teóricas e os conteúdos, ao ponto de se combater aulas esportivizadas e, como principal conteúdo do bloco dos jogos tradicionais e esportes, propor atividades predominantemente esportivas, ou que preparam para o esporte.
A proposta para a organização dos conteúdos de Educação Física para o Ensino Fundamental partiu dos três blocos do documento: jogos tradicionais e esportes (a terminologia foi adequada); atividades rítmicas e expressivas; conhecimentos sobre o corpo. Cada bloco foi estruturado em função do Sistema de Classificação, que organiza as atividades a partir do tipo de interação e do meio de prática (no caso dos jogos e esportes), seguidas das formas de organização das grandes situações motrizes da Educação Física. Na seqüência apresento o primeiro esboço da proposta praxiológica para cada grupo de atividade que será comentada em linhas gerais na seqüência.
aplicada, conhecida e respeitada para que cada modalidade seja colocada em prática.
118
Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.113-120, mai./ago. 2005

OBJETIVOS DOS CONTEÚDOS -PCN    SUGESTÕES DE ORGANIZAÇÃO DAS ATIVIDADES A PARTIR:
            SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO (CAI)      GRANDES SITUAÇÕES MOTRIZES
CONHECIMENTO SOBRE O CORPO             PSICOMOTORAS
        COOPERATIVAS             JOGOS
        EXERCÍCIOS DIDÁTICOS
        ATIVIDADES LIVRES
ATIVIDADES RÍTMICAS E EXPRESSIVAS                 PSICOMOTORAS
        COOPERATIVAS             JOGOS
        EXERCÍCIOS DIDÁTICOS
        ATIVIDADES LIVRES
JOGOS E ESPORTES                  PSICOMOTORAS
        COOPERATIVAS
        OPOSIÇÃO
        COOPERAÇÃO E OPOSIÇÃO
        ATIVIDADES NA NATUREZA               JOGOS
        ESPORTES
        ATIVIDADES LIVRES
Figura 01: Sugestão de grupos de atividades para cada bloco de conteúdos a partir do sistema de classificação e das grandes situações motrizes.
Com relação ao primeiro bloco, conhecimento sobre o corpo, entendemos que para atingirmos as metas propostas deve-se trabalhar a partir de atividades psicomotrizes e cooperativas, ou seja, para conhecermos nosso corpo estes grupos de atividades, na prática, traduzem melhor este caminho. Tanto as atividades psicomotrizes como as atividades cooperativas podem ser trabalhadas a partir de jogos, exercícios didáticos e atividades livres.
No segundo grupo de atividades, atividades rítmicas e expressivas, também estão representadas por atividades psicomotrizes ou cooperativas. Quando ensinarmos atividades deste grupo em nenhum momento se farão necessárias estruturas que privilegiem a oposição porque quando ensinamos ritmo e expressão estamos centrando a atenção em uma relação do praticante com o ritmo (interno e externo) e/ou de sua expressão. Os jogos, exercícios didáticos e as atividades livres são as situações motrizes que caracterizam este bloco. Tanto no bloco anterior como neste as formas competitivas não são as mais adequadas para promover os objetivos propostos.
Por fim, no bloco dos jogos e esportes, além das atividades cooperativas e psicomotrizes, agregam-se as estruturas de oposição e oposição - cooperação. A competição consiste em um dos temas mais importantes neste bloco, principalmente quando desenvolvemos atividades esportivas. Nos jogos o leque de opções aumenta já que
promovem situações em que um colega é adversário e em seguida companheiro, ou então, a possibilidade dos adversários tornarem-se companheiros para superar um terceiro adversário, ou ainda, um desequilíbrio entre equipes. Os exercícios didáticos e os jogos normalmente são utilizados como forma de explorar novas formas de jogar ou melhorar a execução de movimentos.
Comentários finais
Existe uma série de possibilidades que poderíamos propor a partir das situações que apresentamos nesta reflexão. Entretanto, quanto maior o número de detalhes referentes à lógica externa3 ou contexto - como por exemplo, projeto da escola, material e espaço disponível, concepção de mundo do professor e perfil do aluno -, maior será a possibilidade de construir novas perspectivas com base nos instrumentos da Praxiologia Motriz.
É importante destacar que esses critérios praxiológicos não devem ser utilizados como uma ciência exata e sim como referência. O equilíbrio, por exemplo, não tem de ser entendido como 50% para um grupo de atividades e outros 50% para outro grupo, com tamanha exatidão. Esses valores são referências e deverão provocar um diálogo com o contexto. Quero dizer com isso que a leitura proposta pela Praxiologia Motriz, em um primeiro instante, se refere ao jogo ou esporte e não somente ao aluno. Não é o caso de reproduzir receitas de uma turma para a outra e sim de ter clareza das situações pedagógicas que pretende construir com seus alunos.
Assim, os caminhos continuam sendo infinitos e não limitados por um sistema de classificação ou organização de atividades. A diferença é que os critérios da Praxiologia Motriz facilitam a organização desse universo, mas não os cria perfeito e objetivo. O que se torna mais palpável e claro, segundo o prisma da praxiologia motriz, é a lógica interna dos jogos e esportes.
Se antes tínhamos os esportes coletivos e esportes individuais, agora podemos organizar essas modalidades a partir dos tipos de interação (cooperação, oposição, cooperação-oposição e psicomotriz), ou então em relação ao meio de prática (atividades na natureza onde o meio é incerto ou em um meio padronizado), ou ainda, pela forma de regulamentar a atividade (esporte, jogo, atividade livre ou atividade didática). Este estudo deixa as primeiras orientações para os profissionais de Educação Física para organização e seleção de conteúdos a partir do Sistema de Classificação (CAI) e das Grandes Situações Motrizes
Outro ponto que gostaria de destacar é que os critérios de estudos dos jogos e esportes propostos pela Praxiologia motriz não deverão ser entendidos como redução de nossas aulas de Educação Física a ações motrizes. Pelo contrário, sugerimos que se constituam como um elemento a mais para dar novos significados às nossas práticas pedagógicas.
Tenho buscado esclarecer também que a Praxiologia Motriz não deve ser entendida como mais uma vertente pedagógica da Educação Física, e sim como área de conhecimento que apresenta um criterioso olhar sobre os jogos e esportes. Provavelmente um sentido metodológico da Praxiologia irá reduzir a prática pedagógica a sistemas de classificações de atividades e, consequentemente, ocultará a relevância deste conhecimento no processo de ação e reflexão de aulas de Educação Física na escola.
Referências
BRACHT, V. Educação Física:     conhecimento e
especificidade. In: SOUSA, E. S.; VAGO, T. M. (Org.). Trilhas e partilhas: Educação Física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo Horizonte: Cultura, 1997. p.13-23.
3 Modo particular com que pode ser objeto de interpretação externa a lógica de todo jogo esportivo, na qual é possível atribuir significações simbólicas novas e insólitas (Parlebas, 1999: 220).
120
DURING, B. La crisis de las pedagogias corporales.
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Manuscrito recebido em 11 de outubro de 2005. Manuscrito aceito em 07 de dezembro de 2005.
Motriz, Rio Claro, v.H, n.2, p.113-120, mai./ago. 2005