segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Brasil Pais do Futuro - Stefan Zweig

Sei que essa descrição não é completa e não pode ser completa. É impossível conhecer
inteiramente o Brasil, esse mundo tão vasto. Passei cerca de meio ano neste país e
precisamente só agora sei que, apesar de toda a diligência em aprender e de todo o viajar,
ainda não posso dizer que conheço o Brasil e sei também que uma vida inteira não bastaria
para conhecê-lo. Não vi uma série de Estados, dos quais cada um é tão grande como a
Alemanha e a França ou maior do que elas, não percorri as regiões de Mato Grosso e Goiás,
que mesmo as expedições científicas não percorrem inteiramente, nem as florestas do
Amazonas. Não tenho, pois, um conhecimento perfeito da vida primitiva dessas povoações
espalhadas por um território gigantesco e não posso dar uma noção clara da existência de
todas essas classes que apenas têm contacto com a civilização: a dos barqueiros que navegam
nos rios, a dos caboclos da região do Amazonas, a dos garimpeiros, a dos vaqueiros e
gaúchos, a dos seringueiros e a dos sertanejos de Minas Gerais. Não visitei as colônias
alemãs de Santa Catarina, cujas casas antigas, diz-se, têm pendurado o retrato do imperador
Guilherme e cujas casa, novas, ao contrário, têm o retrato de Adolfo Hitler, nem as colônias
japonesas do interior de São Paulo, e não posso dizer com segurança a ninguém se realmente
ainda algumas tribos indígenas das matas virgens são canibais.
Das paisagens dignas de serem vistas, algumas só conheço de fotografia, gravuras e
livros. Não fiz a viagem de vinte dias de subida no rio Amazonas entre as florestas grandiosas
em sua monotonia, não cheguei até as fronteiras do Brasil com o Peru e a Bolívia, e por causa
das dificuldades da navegação na estação desfavorável tive que deixar de fazer a viagem de
doze dias no Rio São Francisco, o grande rio do interior do Brasil e tão importante na sua
história. Não subi o Itatiaia, o monte de três mil metros de altura, de cima do qual se divisa o
planalto brasileiro com seus cimos até os longes, na direção de Minas Gerais e do Rio. Não vi
a maravilha da cachoeira do Iguassú, que em espumante catarata precipita enormes massas
d’água e cuja grandiosidade, segundo o testemunho de visitantes, excede de muito a do
Niágara. Não penetrei com machadinha e facão na espessura da mata virgem. Apesar de todo
o meu viajar, olhar, aprender, ler e procurar, não penetrei muito além da orla da civilização
do Brasil. Tenho que me consolar com a ideia de haver encontrado apenas dois ou três
brasileiros que puderam afirmar conhecer o âmago quase impenetrável de seu país, e com a de
que estrada de ferro, vapor ou auto, meios esses também impotentes contra a vastidão
fantástica desta terra, não me teriam levado muito além dos lugares até onde fui.
Não me é possível expender conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro
econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à
sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão
indistinto, em consequência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de
especialistas para esclarecê-lo inteiramente. É impossível ter uma noção completa dum país
que ainda não tem uma vista de conjunto completa de si próprio e se acha em crescimento tão
rápido que toda estatística e todo relatório já estão atrasados quando impressos. Do grande
número de aspectos quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e
coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao
espírito e à moral.
Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a
resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguirse
no mundo viverem os entes humano pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante
todas a. diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que
imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse
problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do
que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela
qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro. O Brasil resolveu-o
duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas, também a admiração do
mundo.

domingo, 2 de agosto de 2015

Koselleck



Façamos aqui uma referência a mais a um conceito de tempo “histo­ricamente imanente” derivado do mundo natural: trata-se da metáfora anatômica.8 O Direito Natural se apropriou dela e a desenvolveu, na épo­ca do barroco, como alegoria da societas perfecta. Comuns desde a Anti­güidade, as comparações entre as Constituições e o corpo humano, suas funções e suas doenças produzem determinadas constantes de cunho natural, pelas quais se podem medir distanciamento ou aproximação. Trata-se de constantes naturais que, por seu turno, produzem determi­nações temporais não deriváveis de uma cronologia exclusivamente na­tural, isto é, biológica ou astronômica. No entanto, a dinâmica histórica só pode ser reconhecida como tal porque sua interpretação continuou ligada a categorias oriundas da natureza. Permanece sem resposta a ques­tão sobre a possibilidade de a “história absoluta” ser capaz de escapar a essa interpretação quase obrigatória, cuja predominância se estende des­de a Antigüidade até as doutrinas do Direito Natural do século XVIII. Pressupõe-se que não escape a esse entendimento, pois os condiciona­mentos naturais, encontrados em todas as histórias — mais aqui, menos acolá — não podem ser, por seu turno, inteiramente historicizados.


Os gregos, decerto, podiam lembrar as peculiaridades que possuíam em comum e que faltavam aos estrangeiros: a criação da polis como uma organização dos cidadãos — segundo eles — diferente da monarquia dos orientais, a educação do corpo e do espírito, a língua e a arte, os orácu­los e os cultos festivos, nos quais se reunia toda a variedade dos helenos, mas de que os bárbaros estavam excluídos. Existiam, assim, certas áreas que pareciam reforçar o significado positivo dos helenos como cidadãos educados, cultos e livres. A “barbaridade” com que os helenos de fato se tratavam a si próprios, até que ponto o julgamento que faziam de si mes­mos correspondia ou não à verdade objetiva, e até que ponto não passa­va de piedoso desejo, tudo isso foi descrito com moderação e simpatia por Jacob Burckhardt.6


Na determinação dos adversários seculares, Gregório VII foi mais lon­ge, ao desdobrar a pretensão de exclusividade tacitamente presente no par de conceitos “homem cristão-homem secular”. Em 1081 Gregório usou contra Henrique IV a doutrina dos dois corpos, não apenas para esclarecimento mútuo, mas também antiteticamente. E mais: levou adiante a antítese, até a supressão da posição contrária. Disse que seria mais conveniente falar de bons reis como cristãos, em vez de atribuir esse nome a maus soberanos.77 Os primeiros, os cristãos de porte real, gover­nam a si próprios procurando a glória de Deus. Os últimos, ao contrá­rio, andam em busca do próprio prazer, inimigos de si mesmos e tiranos dos demais. Os primeiros pertencem a Cristo, os últimos ao demônio. Hi veri regis Christi, illi vero diaboli corpus sunt [Estes são o corpo do ver­dadeiro rei, Cristo, mas aqueles são o corpo do diabo].