segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Coisas ditas / Pierre Bourdieu

Programa para uma sociologia do esporte

Parte dos obstáculos para uma sociologia científica do esporte deve-se ao fato de que os sociólogos do esporte são de algum modo duplamente dominados, tanto no universo dos sociólogos quanto no universo do esporte. Como seria muito demorado desenvolver essa afirmação um pouco brutal, procederei, à maneira dos profetas, mediante uma parábola. Ontem à noite, em uma discussão com um de meus amigos, o sociólogo americano Aaron Cicourel, soube que os grandes atletas negros, que nos Estados Unidos em geral são pagos por grandes universidades, como a Universidade de Stanford, vivem numa espécie de gueto dourado, pelo fato de as pessoas de direita não falarem de bom grado com os negros e as de esquerda não falarem de bom grado com os esportistas. Se refletirmos sobre isso, desenvolvendo-lhe o paradigma, talvez encontremos aqui o princípio das dificuldades particulares que a sociologia do esporte encontra: desdenhada pelos sociólogos, ela é desprezada pelos esportistas. A lógica da divisão social do trabalho tende a se reproduzir na divisão do trabalho científico. Assim, de um lado existem pessoas que conhecem muito bem o esporte na forma prática, mas que não sabem falar dele, e, de outro, pessoas que conhecem muito mal o esporte na prática e que poderiam falar dele, mas não se dignam a fazê-lo, ou o fazem a torto e a direito. [...]
Para que uma sociologia do esporte possa se constituir, é preciso primeiro perceber que não se pode analisar um esporte particular independentemente do conjunto das práticas esportivas; é preciso pensar o espaço das práticas esportivas como um sistema no qual cada elemento recebe seu valor distintivo. Em outros termos, para compreender um esporte, qualquer que seja ele, é preciso reconhecer a posição que ele ocupa no espaço dos esportes. Este pode ser construído a partir de conjuntos de indicadores, como, de um lado, a distribuição dos praticantes segundo sua posição no espaço social, a distribuição das diferentes federações, segundo o número de adeptos, sua riqueza, as características sociais dos dirigentes, etc., ou, de outro lado, o tipo de relação com o corpo que ele favorece ou exige, conforme implique um contato direto, um corpo-a-corpo, como a luta ou o rúgbi, ou, ao contrário, exclua qualquer contato, como o golfe, ou só o autorize por bola interposta, como o tênis, ou por intermédio de instrumentos, como a esgrima. Em seguida, é preciso relacionar esse espaço de esportes como o espaço social que se manifesta nele. Isso a fim de evitar os erros ligados ao estabelecimento de uma relação direta entre um esporte e um grupo que a intuição comum sugere. De fato, logo de saída sente-se a relação privilegiada estabelecida hoje entre a luta e os membros das classes populares, ou entre o aikidô e a nova pequena burguesia. São coisas que as pessoas compreendem até rápido demais. O trabalho do sociólogo consiste em estabelecer as propriedades socialmente pertinentes que fazem com que um esporte tenha afinidades com os interesses, gostos e preferências de uma determinada categoria social. Assim, como bem mostra Jean-Paul Clément, no caso da luta, por exemplo, a importância do corpo a corpo, acentuada pela nudez dos lutadores, induz um contato corporal áspero e direto, enquanto no aikidô é efêmero, distanciado, e a luta no chão inexiste. Se compreendemos tão facilmente o sentido da oposição entre a luta e o aikidô, é porque a oposição entre “terra a terra”, “viril”, “corpo a corpo”, “direto”, etc., e “aéreo”, “leve”, “distanciado”, “gracioso”, ultrapassa o terreno do esporte e o antagonismo entre duas práticas de luta. Em suma, o elemento determinante do sistema de preferências é aqui a relação com o corpo, com o envolvimento do corpo, que está associada a uma posição social e a uma experiência originária do mundo físico e social. Essa relação com o corpo é solidária com toda a relação com o mundo: as práticas mais distintivas são também aquelas que asseguram a relação mais distanciada com o adversário, são também as mais estetizadas, na medida em que, nelas, a violência está mais eufemizada, e a forma e as formalidades prevalecem sobre a força e a função. A distância social se retraduz muito bem na lógica do esporte: o golfe instaura a distância por toda parte, no que se refere aos não-praticantes, pelo espaço reservado, harmoniosamente ordenado, onde se desenrola a prática esportiva, no que se refere aos adversários, pela própria lógica do confronto, que exclui todo contato direto, ainda que pela intermediação de uma bola.
Mas isso não basta e pode até levar a uma visão realista e substancialista, não só de cada um dos esportes e do conjunto dos respectivos praticantes, mas também da relação entre os dois. Como eu havia tentado mostrar na introdução ao VII Congresso do HISPA, é preciso ter cuidado para não estabelecer uma relação direta, como acabo de fazer, entre um esporte e uma posição social, entre a luta ou o futebol e os operários, entre o judô e os funcionários. Mesmo porque verificaríamos facilmente que os operários estão longe de ser os mais representados entre os futebolistas. Na verdade, a correspondência, que é uma autêntica homologia, estabelece-se entre o espaço das práticas esportivas, ou, mais precisamente, das diferentes modalidades finamente analisadas da prática dos diferentes esportes, e o espaço das posições sociais. É na relação entre esses dois espaços que se definem as propriedades pertinentes de cada prática esportiva. E as próprias mudanças nas práticas só podem ser compreendidas, nessa lógica, na medida em que um dos fatores que as determinam é a vontade de manter no nível das práticas a distância que existe entre as posições. A história das práticas esportivas só pode ser uma história estrutural, levando em conta as transformações sistemáticas acarretadas, por exemplo, pelo surgimento de um esporte novo (os esportes californianos) ou a difusão de um esporte existente, como o tênis. Parênteses: uma das dificuldades na análise das práticas esportivas reside no fato de que a unidade nominal (tênis, esqui, futebol) considerada pelas estatísticas (inclusive as melhores e mais recentes delas, como a do Ministério dos Assuntos Culturais) mascara uma dispersão, mais ou menos forte, conforme os esportes, das maneiras de praticá-los, e no fato de que essa dispersão cresce quando o aumento do número de praticantes (que pode ser apenas o efeito da intensificação da prática das categorias já praticantes) é acompanhado de uma diversificação social desses praticantes. É o caso do tênis, cuja unidade nominal máscara que, sob o mesmo nome, coexistem maneiras de praticar tão diferentes quanto são diferentes, em sua categoria, o esqui fora da pista, o esqui de circuito e o esqui comum: o tênis dos pequenos clubes municipais, que se pratica com jeans e Adidas, num chão duro, já não tem muito mais em comum com o tênis de traje branco e saia plissada que eram obrigatórios há uns vinte anos e que se perpetuam nos clubes seletos (ainda seria encontrado todo um universo de diferenças ao nível do estilo dos jogadores, de sua relação com a competição, com o treinamento, etc.).
Em suma, a prioridade das prioridades é a construção da estrutura do espaço das práticas esportivas do qual as monografias consagradas a esportes particulares vão registrar os efeitos. Se não sei que as perturbações de Urano são determinadas por Netuno, acreditarei que compreendo o que se passa em Urano, quando na realidade compreenderei os efeitos de Netuno. O objeto da história é a história dessas transformações da estrutura, que só são compreensíveis a partir do conhecimento do que era a estrutura em dado momento (o que significa que a oposição entre estrutura e transformação, entre estática e dinâmica, é totalmente fictícia e que não há outro modo de compreender a transformação a não ser a partir de um conhecimento da estrutura). Eis o primeiro ponto.
O segundo ponto é que esse espaço dos esportes não é um universo fechado sobre si mesmo. Ele está inserido num universo de práticas e consumos, eles próprios estruturados e constituídos como sistema. Há boas razões para se tratar as práticas esportivas como um espaço relativamente autônomo, mas não se deve esquecer que esse espaço é o lugar de forças que não se aplicam só a ele. Quero simplesmente dizer que não se pode estudar o consumo esportivo, se quisermos chamá-lo assim, independentemente do consumo alimentar ou do consumo de lazer em geral. As práticas esportivas passíveis de serem registradas pela pesquisa estatística podem ser descritas como a resultante da relação entre uma oferta e uma procura, ou, mais precisamente, entre o espaço dos produtos oferecidos num dado momento e o espaço das disposições (associadas à posição ocupada no espaço social e passíveis de se exprimirem em outros tipos de consumo em relação com um outro espaço de oferta).
Quando se tem em mente a lógica estrutural no interior da qual está definida cada uma das práticas, o que deve ser a prática científica concreta? O trabalho do pesquisador consiste simplesmente em desenhar esse espaço, apoiando-se, por exemplo, na estrutura da distribuição dos lutadores, dos boxeadores, dos jogadores de rúgbi, etc., por sexo, por idade, por profissão? Na verdade, esse quadro estrutural pode, durante certo tempo, continuar grosseiramente desenhado, em função das estatísticas globais que estão disponíveis e sobretudo dos limites dessas estatísticas e dos códigos segundo os quais elas são construídas.
Aí está um princípio de método bem geral: antes de se contentar em conhecer a fundo um pequeno setor da realidade da qual não se sabe muito, por não se ter colocado a questão, como ele se situa no espaço de onde foi destacado e o que o seu funcionamento pode dever a essa posição, é preciso — com o risco de contrariar as expectativas positivistas que, seja dito de passagem, tudo parece justificar (“mais vale trazer uma pequena contribuição modesta e precisa do que erguer grandes construções superficiais”) —, é preciso, portanto, à maneira dos arquitetos acadêmicos, que apresentavam um esboço em carvão do conjunto do edifício no interior do qual se situava a parte elaborada em detalhe, esforçar-se por construir uma descrição sumária do conjunto do espaço considerado.
Por mais imperfeito que seja esse quadro provisório, sabe- se ao menos que ele deve ser preenchido, e que os próprios trabalhos empíricos que ele orienta contribuirão para preenchê-lo. E ainda permanece o fato de que esses trabalhos são radicalmente diferentes, em sua própria intenção, do que teriam sido na ausência desse quadro, que é a condição de uma construção adequada dos objetos da pesquisa empírica particular. Esse esquema teórico (aqui, a idéia de espaço dos esportes; em outro nível, a noção de campo do poder), mesmo que ele permaneça em grande parte vazio, mesmo que ele forneça sobretudo prevenções e orientações pragmáticas, faz com que eu escolha meus objetos de outro modo e que possa maximizar o rendimento das monografias: se, por exemplo, só podendo estudar três esportes, tenho em mente o espaço dos esportes, e hipóteses referentes aos eixos segundo os quais esse espaço se constrói, poderei escolher maximizar o rendimento dos meus investimentos científicos escolhendo três pontos bem afastados no espaço. Ou, então, poderei, como fez, por exemplo, Jean-Paul Clément, optar por estudar um subespaço nesse espaço, o subespaço dos esportes de combate, e fazer, nessa escala, um estudo do efeito de estrutura apreendendo a luta, o judô, o aikidô com três pontos de um mesmo subcampo de forças. Poderei, sem correr o risco de me perder em detalhes, ver de muito perto o que me parece ser a condição do trabalho científico, filmar as lutas, cronometrar quanto tempo se passa deitado no chão na luta, no judô, no aikidô, em suma, poderei avaliar tudo o que é possível avaliar, mas a partir de uma construção que determina a escolha dos objetos e dos traços pertinentes. Tenho consciência, tendo muito pouco tempo, do caráter um pouco abrupto, peremptório e talvez aparentemente contraditório do que acabo de dizer. Entretanto, acho que dei indicações suficientes sobre o que pode ser um método que vise instaurar a dialética entre o global e o particular, o único que pode permitir conciliar a visão global e sinóptica que a construção da estrutura de conjunto exige com a visão idiográfica, aproximada. O antagonismo entre a grande visão macrossociológica e a visão microscópica de uma microssociologia, ou entre a construção das estruturas objetivas e a descrição das representações subjetivas dos agentes, de suas construções práticas, desaparece, bem como todas as oposições em forma de “par epistemológico” (entre teoria e empiria, etc.), a partir do momento em que se tenha conseguido — o que me parece ser a arte por excelência do pesquisador — investir um problema teórico de grande alcance num objeto empírico bem-construído (por referência ao espaço global no qual está situado) e controlável com os meios disponíveis, isto é, eventualmente, por um pesquisador isolado, sem apoio financeiro, reduzido apenas à sua própria força de trabalho.
Mas preciso corrigir a impressão de realismo objetivista que pode dar minha referência a um “quadro estrutural” concebido como preliminar à análise empírica. Eu sempre digo que as estruturas não são outra coisa senão o produto objetivado das lutas históricas tal como se pode apreendê-lo num dado momento do tempo. E o universo das práticas esportivas que a pesquisa estatística fotografa em certo momento não é senão a resultante da relação entre uma oferta, produzida por toda a história anterior, isto é, um conjunto de “modelos”, de práticas (regras, equipamentos, instituições especializadas), e uma procura, inscrita nas disposições. A própria oferta tal como se apresenta num dado momento, sob a forma de um conjunto de esportes passíveis de serem praticados (ou vistos), já é produto de uma longa série de relações entre modelos de práticas e dis-posições para a prática. Por exemplo, como bem mostrou Christian Pociello, o programa de práticas corporais que a palavra “rúgbi” designa não é o mesmo — ainda que, em sua definição formal, técnica, tenha permanecido idêntico, com algumas poucas mudanças de regras — nos anos 30, em 1950 e em 1980. Ele é marcado, na objetividade e nas representações, pelas apropriações de que foi objeto e pelas especificações (por exemplo, a “violência”) que recebeu na “realização” concreta operada pelos agentes dotados de disposições socialmente constituídas de uma forma particular (por exemplo, nos anos 30, os estudantes do PUC e do SBUC, ou de Oxford e Cambridge, e, nos anos 80, os mineiros galeses e os agricultores, os pequenos comerciantes ou os funcionários de Romans, de Toulon ou de Béziers). Esse efeito de apropriação social faz com que, a todo momento, cada uma das “reali-dades” oferecidas sob o nome de esporte seja marcada, na objetividade, por um conjunto de propriedades que não estão inscritas na definição puramente técnica, que podem até ser oficialmente excluídas dela, e que orientam as práticas e as escolhas (entre outras coisas, dando um fundamento objetivo aos juízos do tipo “isso é coisa de pequeno burguês” ou “coisa de intelectual”, etc.). Assim, a distribuição diferencial das práticas esportivas resulta do estabelecimento de uma relação entre dois espaços homólogos, um espaço das práticas possíveis, a oferta, e um espaço das disposições a serem praticadas, a procura: do lado da oferta, temos um espaço dos esportes entendidos como programas de práticas esportivas, que são caracterizadas, em primeiro lugar, em suas propriedades intrínsecas, técnicas (isto é, em particular, as possibilidades e sobretudo as impossibilidades que eles oferecem à expressão das diferentes disposições corporais), e, em segundo lugar, nas suas propriedades relacionais, estruturais, tal como se definem em relação ao conjunto dos outros programas de práticas esportivas simultaneamente oferecidas, mas que só se realiza plenamente num dado momento, recebendo as propriedades de apropriação que sua associação dominante lhes confere, tanto na realidade como na representação, através dos participantes modais, em relação a uma posição no espaço social; por outro lado, da parte da procura, temos um espaço das disposições esportivas que, enquanto dimensão do sistema de disposições (do habitus), estão relacionalmente, estruturalmente, caracterizadas, como as posições às quais elas correspondem, e que num dado momento são definidas na particularidade de sua especificação pelo estado atual da oferta (que contribui para produzir a necessidade, apresentando-lhe a possibilidade efetiva de sua realização) e também pela realização da oferta no estado anterior. Acho que este é um modelo bem geral que rege as mais diferentes práticas de consumo. Desse modo, vimos que Vivaldi ganhou, num intervalo de vinte anos, sentidos sociais totalmente opostos, e passou do estado de “redescoberta” musicológica ao estatuto de música de fundo no supermercado Monoprix. Ainda que seguramente um esporte, uma obra musical ou um texto filosófico definam, devido às suas propriedades intrínsecas, os limites dos usos sociais que podem ser feitos deles, eles se prestam a uma diversidade de utilizações e são marcados a cada momento pelo uso domi-nante que é feito deles. Um autor filosófico, Spinoza ou Kant, por exemplo, na verdade daquilo que se propõe a percepção, nunca se reduz à verdade intrínseca da obra, e, em sua verdade social, ele engloba as leituras mais importantes que fazem dela os kantianos e os spinozistas do momento, eles próprios definidos não só por sua relação objetiva ou subjetiva com os kantianos e com os spinozistas do período anterior e suas leituras, mas também com os promotores ou com os defensores de outras filosofias. É contra esse complexo indivisível que é o Kant apropriado por kantianos que projetam em Kant, e não apenas pela leitura que fazem dele, suas propriedades sociais, qué Heidegger reage quando opõe um Kant metafísico, quase existencialista (por exemplo, com o tema da finitude), ao Kant cosmopolita, universalista, racionalista, progressista dos neokantianos. Vocês devem estar se perguntando aonde quero chegar. Na verdade, assim como o sentido social de uma óbra de filosofia pode se inverter dessa maneira (e a maior parte das obras, Descartes, Kant, ou mesmo Marx, estão sempre mudando de sentido, cada geração de comentadores vem destruir a leitura da geração precedente), do mesmo modo, uma prática esportiva que, em sua definição técnica, “intrínseca”, sempre apresenta uma grande elasticidade, logo, oferece uma grande disponibilidade para usos totalmente diferentes, até opostos; também pode mudar de sentido. Mais exatamente, o sentido dominante, isto é, o sentido social que lhes é atribuído por seus usuários sociais dominantes (numérica ou socialmente) pode mudar: com efeito, é freqüente que no mesmo momento, e isso é válido também para uma obra filosófica, um esporte receba dois sentidos muito diferentes, e que o programa objetivado de prática esportiva designado por um termo como corrida a pé ou natação, ou mesmo tênis, rúgbi, luta, judô, seja um alvo de lutas — pelo próprio fato de sua polissemia objetiva, de sua indeterminação parcial, que o torna disponível para vários usos — entre pessoas que se opõem quanto ao uso verdadeiro, do bom uso, da boa maneira de. exercitar a prática proposta pelo programa objetivado, de prática considerado (ou, no caso de uma obra filosófica ou musical, pelo programa objetivado de leitura ou de execução). Num dado momento, um esporte é um pouco como uma obra musical: uma partitura (uma regra do jogo, etc.), mas também interpretações concorrentes (e todo um conjunto de interpretações do passado sedimentado); e é com tudo isso que cada novo intérprete se defronta, mais inconsciente do que conscientemente, quando propõe “sua” interpretação. Seria preciso analisar, nessa lógica, os “retornos” (a Kant, aos instrumentos de época, ao boxe francês, etc.). Eu dizia que o sentido dominante pode mudar. De fato, principalmente porque ele se define por oposição a esse sentido dominante, um novo tipo de prática esportiva pode ser construído com elementos do programa dominante de prática esportiva que estavam em estado virtual, implícito ou recalcado (por exemplo, toda a violência que estava excluída de um esporte por imposição do fair play). O princípio dessas reviravoltas, que apenas a lógica da distinção não basta para explicar, certamente reside na reação dos novatos, e das disposições constituídas socialmente que eles introduzem no campo, contra o, complexo socialmente marcado que um esporte constitui, ou uma obra filosófica, como programa objetivado de prática, mas socialmente realizado, encarnado em agentes socialmente marcados, logo, marcados pelas características sociais desses agentes, pelo efeito de apropriação. Se, para a visão sincrônica, tal ou tal desses programas, aquele programa que um nome de esporte designa (luta, equitação, tênis) ou um nome próprio de filósofo ou compositor, ou um nome de gênero, ópera, opereta, teatro de bulevar, ou mesmo um estilo, realismo, simbolismo, etc., parece diretamente ligado às disposições inscritas nos ocupantes de uma determinada posição social (é, por exemplo, o vínculo entre a luta ou o rúg- bi e os dominantes), uma visão diacrônica pode levar a uma representação diferente, como se o mesmo objeto oferecido pudesse ser apropriado por agentes dotados de disposições muito diversas, em suma, como se qualquer um pudesse se apropriar de qualquer programa e qualquer programa pudesse ser apropriado por qualquer um. (Esse saudável “relativismo” pelo menos tem a virtude de prevenir contra a tendência, recorrente em história da arte, de estabelecer um vínculo direto entre as posições sociais e as tomadas de posição estéticas, entre o “realismo”, por exemplo, e os dominados, esquecendo que as mesmas disposições poderão, por referência a espaços de oferta diferentes, exprimir-se em tomadas de posição diferentes.) Na verdade, a elasticidade semântica nunca é infinita (basta pensar no golfe e na luta), e sobretudo, em cada momento, as escolhas entre as diferentes possibilidades oferecidas nunca se distribuem ao acaso, ainda que, quando o espaço dos possíveis é muito restrito (por exemplo, o jovem Marx contra o Marx da maturidade), a relação entre as dis-posições e as tomadas de posição seja muito obscura, pelo fato de as disposições, que podem projetar diretamente sua estrutu-ra de exigências em universos mais abertos, menos codificados, serem obrigadas, nesse caso, a se limitar a escolhas negativas ou ao menos ruim. Acho possível dizer que as disposições associadas às diferentes posições no espaço social, e em parti-cular as disposições estruturalmente opostas ligadas às dis-posições opostas nesse espaço, sempre encontram um meio de se exprimir, mas, às vezes, sob a forma irreconhecível das oposições específicas, ínfimas e imperceptíveis se não tivermos as categorias de percepção adequadas, que organizam um campo determinado num dado momento. Não há nada que impeça pensar que as mesmas disposições que levaram Heidegger a uma forma de pensamento “revolucionário conser-vador” teriam podido, em referência a outro espaço de oferta filosófica, levá-lo até o jovem Marx; ou que a mesma pessoa (mas ela não seria a mesma) que vê hoje no aikidô uma maneira de escapar do judô, naquilo que ele tem de objetivamente limitado, competitivo, pequeno-burguês — é evidente que estou falando do judô socialmente apropriado —, teria exigido, há trinta anos, mais ou menos a mesma coisa do judô.
Eu gostaria ainda de lembrar, mesmo superficialmente, todo o programa de pesquisas que está implicado na idéia de que um campo de profissionais da produção de bens e serviços esportivos está se constituindo progressivamente (entre os quais, por exemplo, os espetáculos esportivos), no interior do qual se desenvolvem interesses específicos, ligados à concorrência, relações de força específica, etc. Eu me contentarei em mencionar, entre outras, uma conseqüência da constituição desse campo relativamente autônomo, a saber, o contínuo aumento da ruptura entre profissionais e amadores, que vai pari passu com o desenvolvimento de um esporte-espetáculo totalmente separado do esporte comum. É notável que se observe um processo semelhante em outras áreas, particularmente na dança. Nos dois casos, a constituição progressiva de um campo relativamente autônomo reservado a profissionais é acompanhada de uma despossessão dos leigos, pouco a pouco reduzidos ao papel de espectadores: por oposição à dança camponesa, em geral associada a funções rituais, a dança cortesã, que se torna espetáculo, supõe conhecimentos específicos (é preciso conhecer o compasso e os passos), portanto, mestres de dança são levados a enfatizar a virtuosidade técnica e a operar um trabalho de explicitação e de codificação; a partir do século XIX, aparecem dançarinos profissionais, que se apresentam nos salões diante de pessoas que praticam e ainda podem apreciar como conhecedores; depois, por fim, dá-se a ruptura total entre os dançarinos estrelas e espectadores sem prática reduzidos a uma compreensão passiva. A partir de então, a evolução da prática profissional depende cada vez mais da lógica interna do campo de profissionais, sendo os não-profissionais relegados à categoria de público cada vez menos capaz da compreensão dada pela prática. Em matéria de esporte, estamos freqüentemente, na melhor das hipóteses, no estágio da dança do século X3X, com profissionais que se apresentam para amadores que ainda praticam ou praticaram; mas a difusão favorecida pela televisão introduz cada vez mais espectadores desprovidos de qualquer competência prática e atentos a aspectos extrínsecos da prática, como o resultado, a vitória. . O que acarreta efeitos, por intermédio da sanção (financeira ou outra) dada pelo público, no próprio funcionamento do campo de profissionais (como a busca de vitória a qualquer preço e, com ela, entre outras coisas, o aumento da violência).
Termino por aqui, já que o tempo que me foi concedido está praticamente esgotado. Indico o último ponto em alguns segundos. Falei inicialmente dos efeitos da divisão do trabalho entre os teóricos e os práticos no interior do campo científico. Penso que o esporte é, com a dança, um dos terrenos onde se coloca com acuidade máxima o problema das relações entre a teoria e a prática, e também entre a linguagem e o corpo. Certos professores de educação física tentaram analisar o que é, por exemplo, para um treinador ou para um professor de música comandar o corpo. Como ensinar a alguém, isto é, a seu corpo, a corrigir seu gesto? Os problemas colocados pelo ensino de uma prática corporal me parecem encerrar um Conjunto de questões teóricas de importância capital, na medida em que as ciências sociais se esforçam por fazer a teoria de condutas, que se produzem, em sua grande maioria, aquém da consciência, que se aprendem, pode-se dizer, por uma comunicação silen-ciosa, prática, corpo a corpo. E a pedagogia esportiva talvez seja o terreno por excelência para colocar o problema que em geral é exposto no terreno da política: o problema da tomada de consciência. Há um modo de compreensão totalmente particular, em geral esquecido nas teorias da inteligência, e que consiste em compreender com o corpo. Há uma infinidade de coisas que compreendemos somente com nosso corpo, aquém da consciência, sem ter palavras para exprimi-lo. O silêncio dos esportistas de que falei no início deve-se em parte, quando não se é profissional da explicitação, ao fato de haver coisas que não se sabe dizer, e as práticas esportivas são essas práticas nas quais a compreensão é corporal. Em geral, só se pode dizer: “Olhe, faça como eu”. Nota-se com freqüência que os livros escritos por grandes dançarinos não transmitem quase nada daquilo que fez o “gênio” de seus autores. E Edwin Denby, pensando em Théophile Gautier ou em Mallarmé, dizia que as observações mais pertinentes sobre a dança partem menos dos dançarinos, ou mesmo dos críticos, do que dos amadores esclarecidos. O que se compreende se sabemos que a dança é a única das artes eruditas cuja transmissão — entre dançarinos e público, mas também entre mestre e discípulo —é inteiramente oral e visual, ou melhor, mimética. Isso em razão da ausência de qualquer objetivação numa escritura adequada (a ausência do equivalente da partitura, que permite distinguir claramente entre partitura e execução, leva a identificar a obra à performance, a dança ao dançarino). Poderíamos, nessa perspectiva, tentar estudar o que foram os efeitos, tanto na dança como no esporte, da introdução da filmadora. Uma das questões colocadas é saber se é preciso passar pelas palavras para ensinar determinadas coisas ao corpo, se, quando se fala ao corpo com palavras, são as palavras precisas teoricamente, cientificamente, aquelas que fazem o corpo compreender melhor ou se, às vezes, palavras que não têm nada a ver com a descrição adequada do que se quer transmitir não são mais bem compreendidas pelo corpo. Refletindo sobre essa compreensão do corpo, talvez fosse possível contribuir para uma teoria da crença. Vocês vão pensar que procedo com botas de sete léguas. Penso que há uma ligação entre o corpo e o que em francês nós chamamos de esprit de corps. Se a maioria das organizações, seja a Igreja, o Exército, os partidos, as indústrias, etc., dão tanto espaço às disciplinas corporais, é porque, em grande parte, a obediência é a crença, e porque a crença é o que o corpo admite mesmo quando o espírito diz não (poderíamos, nessa lógica, refletir sobre a noção de disciplina). Talvez seja refletindo sobre o que o esporte tem de mais específico, isto é, a manipulação regrada do corpo, sobre o fato de o esporte, como todas as disciplinas em todas as instituições totais ou totalitárias, os conventos, as prisões, os asilos, os partidos, etc., ser uma maneira de obter do corpo uma adesão que o espírito poderia recusar, que se conseguiria compreender melhor o uso que a maior parte dos regimes autoritários faz do esporte. A disciplina corporal é o instrumento por excelência de toda espécie de “domesticação”: sabe-se o uso que a pedagogia dos jesuítas fazia da dança. Seria preciso analisar a relação dialética que une as posturas corporais e os sentimentos correspondentes: adotar certas posições ou certas posturas é, sabe-se desde Pascal, induzir ou reforçar os sentimentos que elas exprimem. O gesto, segundo o paradoxo do comediante ou do dançarino, reforça o sentimento que reforça o gesto. Assim se explica o lugar destinado por todos os regimes de caráter totalitário às práticas corporais coletivas que, simbolizando o social, contribuem para somatizá- lo e que, pela mimesis corporal e coletiva da orquestração social, visam reforçar essa orquestração. A História do soldado lembra a velha tradição popular: fazer alguém dançar significa possuí-lo. Os “exercícios espirituais” são exercícios corporais, e inúmeros treinamentos modernos são uma forma de ascese no século.

Há uma contradição, que sinto muito fortemente, entre o que quero dizer e as condições nas quais digo isso. Teria sido preciso que eu tomasse um exemplo absolutamente preciso e o aprofundasse; ora, devido à aceleração imposta a meu discurso pelas pressões do horário, vocês podem ter a impressão de que propus grandes perspectivas teóricas quando minha intenção era totalmente inversa...

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