Programa
para uma sociologia do esporte
Parte dos
obstáculos para uma sociologia científica do esporte deve-se ao fato de que os
sociólogos do esporte são de algum modo duplamente dominados, tanto no universo
dos sociólogos quanto no universo do esporte. Como seria muito demorado
desenvolver essa afirmação um pouco brutal, procederei, à maneira dos profetas,
mediante uma parábola. Ontem à noite, em uma discussão com um de meus amigos, o
sociólogo americano Aaron Cicourel, soube que os grandes atletas negros, que
nos Estados Unidos em geral são pagos por grandes universidades, como a
Universidade de Stanford, vivem numa espécie de gueto dourado, pelo fato de as
pessoas de direita não falarem de bom grado com os negros e as de esquerda não
falarem de bom grado com os esportistas. Se refletirmos sobre isso,
desenvolvendo-lhe o paradigma, talvez encontremos aqui o princípio das
dificuldades particulares que a sociologia do esporte encontra: desdenhada
pelos sociólogos, ela é desprezada pelos esportistas. A lógica da divisão
social do trabalho tende a se reproduzir na divisão do trabalho científico.
Assim, de um lado existem pessoas que conhecem muito bem o esporte na forma
prática, mas que não sabem falar dele, e, de outro, pessoas que conhecem muito
mal o esporte na prática e que poderiam falar dele, mas não se dignam a
fazê-lo, ou o fazem a torto e a direito. [...]
Para que
uma sociologia do esporte possa se constituir, é preciso primeiro perceber que
não se pode analisar um esporte particular independentemente do conjunto das
práticas esportivas; é preciso pensar o espaço das práticas esportivas como um
sistema no qual cada elemento recebe seu valor distintivo. Em outros termos,
para compreender um esporte, qualquer que seja ele, é preciso reconhecer a
posição que ele ocupa no espaço dos esportes. Este pode ser construído a partir
de conjuntos de indicadores, como, de um lado, a distribuição dos praticantes
segundo sua posição no espaço social, a distribuição das diferentes federações,
segundo o número de adeptos, sua riqueza, as características sociais dos
dirigentes, etc., ou, de outro lado, o tipo de relação com o corpo que ele
favorece ou exige, conforme implique um contato direto, um corpo-a-corpo, como
a luta ou o rúgbi, ou, ao contrário, exclua qualquer contato, como o golfe, ou
só o autorize por bola interposta, como o tênis, ou por intermédio de
instrumentos, como a esgrima. Em seguida, é preciso relacionar esse espaço de
esportes como o espaço social que se manifesta nele. Isso a fim de evitar os
erros ligados ao estabelecimento de uma relação direta entre um esporte e um
grupo que a intuição comum sugere. De fato, logo de saída sente-se a relação
privilegiada estabelecida hoje entre a luta e os membros das classes populares,
ou entre o aikidô e a nova pequena burguesia. São coisas que as pessoas
compreendem até rápido demais. O trabalho do sociólogo consiste em estabelecer
as propriedades socialmente pertinentes que fazem com que um esporte tenha
afinidades com os interesses, gostos e preferências de uma determinada
categoria social. Assim, como bem mostra Jean-Paul Clément, no caso da luta,
por exemplo, a importância do corpo a corpo, acentuada pela nudez dos
lutadores, induz um contato corporal áspero e direto, enquanto no aikidô é
efêmero, distanciado, e a luta no chão inexiste. Se compreendemos tão
facilmente o sentido da oposição entre a luta e o aikidô, é porque a oposição
entre “terra a terra”, “viril”, “corpo a corpo”, “direto”, etc., e “aéreo”,
“leve”, “distanciado”, “gracioso”, ultrapassa o terreno do esporte e o
antagonismo entre duas práticas de luta. Em suma, o elemento determinante do
sistema de preferências é aqui a relação com o corpo, com o envolvimento do
corpo, que está associada a uma posição social e a uma experiência originária
do mundo físico e social. Essa relação com o corpo é solidária com toda a
relação com o mundo: as práticas mais distintivas são também aquelas que
asseguram a relação mais distanciada com o adversário, são também as mais
estetizadas, na medida em que, nelas, a violência está mais eufemizada, e a
forma e as formalidades prevalecem sobre a força e a função. A distância social
se retraduz muito bem na lógica do esporte: o golfe instaura a distância por
toda parte, no que se refere aos não-praticantes, pelo espaço reservado,
harmoniosamente ordenado, onde se desenrola a prática esportiva, no que se
refere aos adversários, pela própria lógica do confronto, que exclui todo
contato direto, ainda que pela intermediação de uma bola.
Mas isso
não basta e pode até levar a uma visão realista e substancialista, não só de
cada um dos esportes e do conjunto dos respectivos praticantes, mas também da
relação entre os dois. Como eu havia tentado mostrar na introdução ao VII
Congresso do HISPA, é preciso ter cuidado para não estabelecer uma relação
direta, como acabo de fazer, entre um esporte e uma posição social, entre a
luta ou o futebol e os operários, entre o judô e os funcionários. Mesmo porque
verificaríamos facilmente que os operários estão longe de ser os mais representados
entre os futebolistas. Na verdade, a correspondência, que é uma autêntica
homologia, estabelece-se entre o espaço das práticas esportivas, ou, mais
precisamente, das diferentes modalidades finamente analisadas da prática dos
diferentes esportes, e o espaço das posições sociais. É na relação entre esses
dois espaços que se definem as propriedades pertinentes de cada prática
esportiva. E as próprias mudanças nas práticas só podem ser compreendidas,
nessa lógica, na medida em que um dos fatores que as determinam é a vontade de
manter no nível das práticas a distância que existe entre as posições. A
história das práticas esportivas só pode ser uma história estrutural, levando
em conta as transformações sistemáticas acarretadas, por exemplo, pelo
surgimento de um esporte novo (os esportes californianos) ou a difusão de um
esporte existente, como o tênis. Parênteses: uma das dificuldades na análise
das práticas esportivas reside no fato de que a unidade nominal (tênis, esqui,
futebol) considerada pelas estatísticas (inclusive as melhores e mais recentes
delas, como a do Ministério dos Assuntos Culturais) mascara uma dispersão, mais
ou menos forte, conforme os esportes, das maneiras de praticá-los, e no fato de
que essa dispersão cresce quando o aumento do número de praticantes (que pode ser
apenas o efeito da intensificação da prática das categorias já praticantes) é
acompanhado de uma diversificação social desses praticantes. É o caso do tênis,
cuja unidade nominal máscara que, sob o mesmo nome, coexistem maneiras de
praticar tão diferentes quanto são diferentes, em sua categoria, o esqui fora
da pista, o esqui de circuito e o esqui comum: o tênis dos pequenos clubes
municipais, que se pratica com jeans e
Adidas, num chão duro, já não tem muito mais em comum com o tênis de traje
branco e saia plissada que eram obrigatórios há uns vinte anos e que se
perpetuam nos clubes seletos (ainda seria encontrado todo um universo de
diferenças ao nível do estilo dos jogadores, de sua relação com a competição,
com o treinamento, etc.).
Em suma, a
prioridade das prioridades é a construção da estrutura do espaço das práticas
esportivas do qual as monografias consagradas a esportes particulares vão
registrar os efeitos. Se não sei que as perturbações de Urano são determinadas
por Netuno, acreditarei que compreendo o que se passa em Urano, quando na
realidade compreenderei os efeitos de Netuno. O objeto da história é a história
dessas transformações da estrutura, que só são compreensíveis a partir do
conhecimento do que era a estrutura em dado momento (o que significa que a
oposição entre estrutura e transformação, entre estática e dinâmica, é
totalmente fictícia e que não há outro modo de compreender a transformação a
não ser a partir de um conhecimento da estrutura). Eis o primeiro ponto.
O segundo
ponto é que esse espaço dos esportes não é um universo fechado sobre si mesmo.
Ele está inserido num universo de práticas e consumos, eles próprios
estruturados e constituídos como sistema. Há boas razões para se tratar as
práticas esportivas como um espaço relativamente autônomo, mas não se deve
esquecer que esse espaço é o lugar de forças que não se aplicam só a ele. Quero
simplesmente dizer que não se pode estudar o consumo esportivo, se quisermos
chamá-lo assim, independentemente do consumo alimentar ou do consumo de lazer
em geral. As práticas esportivas passíveis de serem registradas pela pesquisa
estatística podem ser descritas como a resultante da relação entre uma oferta e
uma procura, ou, mais precisamente, entre o espaço dos produtos oferecidos num dado
momento e o espaço das disposições (associadas à posição ocupada no espaço
social e passíveis de se exprimirem em outros tipos de consumo em relação com
um outro espaço de oferta).
Quando se
tem em mente a lógica estrutural no interior da qual está definida cada uma das
práticas, o que deve ser a prática científica concreta? O trabalho do
pesquisador consiste simplesmente em desenhar esse espaço, apoiando-se, por
exemplo, na estrutura da distribuição dos lutadores, dos boxeadores, dos
jogadores de rúgbi, etc., por sexo, por idade, por profissão? Na verdade, esse
quadro estrutural pode, durante certo tempo, continuar grosseiramente
desenhado, em função das estatísticas globais que estão disponíveis e sobretudo
dos limites dessas estatísticas e dos códigos segundo os quais elas são
construídas.
Aí está um
princípio de método bem geral: antes de se contentar em conhecer a fundo um
pequeno setor da realidade da qual não se sabe muito, por não se ter colocado a
questão, como ele se situa no espaço de onde foi destacado e o que o seu
funcionamento pode dever a essa posição, é preciso — com o risco de contrariar
as expectativas positivistas que, seja dito de passagem, tudo parece justificar
(“mais vale trazer uma pequena contribuição modesta e precisa do que erguer
grandes construções superficiais”) —, é preciso, portanto, à maneira dos
arquitetos acadêmicos, que apresentavam um esboço em carvão do conjunto do
edifício no interior do qual se situava a parte elaborada em detalhe,
esforçar-se por construir uma descrição sumária do conjunto do espaço
considerado.
Por mais
imperfeito que seja esse quadro provisório, sabe- se ao menos que ele deve ser
preenchido, e que os próprios trabalhos empíricos que ele orienta contribuirão
para preenchê-lo. E ainda permanece o fato de que esses trabalhos são
radicalmente diferentes, em sua própria intenção, do que teriam sido na
ausência desse quadro, que é a condição de uma construção adequada dos objetos
da pesquisa empírica particular. Esse esquema teórico (aqui, a idéia de espaço
dos esportes; em outro nível, a noção de campo do poder), mesmo que ele
permaneça em grande parte vazio, mesmo que ele forneça sobretudo prevenções e
orientações pragmáticas, faz com que eu escolha meus objetos de outro modo e
que possa maximizar o rendimento das monografias: se, por exemplo, só podendo
estudar três esportes, tenho em mente o espaço dos esportes, e hipóteses
referentes aos eixos segundo os quais esse espaço se constrói, poderei escolher
maximizar o rendimento dos meus investimentos científicos escolhendo três pontos
bem afastados no espaço. Ou, então, poderei, como fez, por exemplo, Jean-Paul
Clément, optar por estudar um subespaço nesse espaço, o subespaço dos esportes
de combate, e fazer, nessa escala, um estudo do efeito de estrutura apreendendo
a luta, o judô, o aikidô com três pontos de um mesmo subcampo de forças.
Poderei, sem correr o risco de me perder em detalhes, ver de muito perto o que
me parece ser a condição do trabalho científico, filmar as lutas, cronometrar
quanto tempo se passa deitado no chão na luta, no judô, no aikidô, em suma,
poderei avaliar tudo o que é possível avaliar, mas a partir de uma construção
que determina a escolha dos objetos e dos traços pertinentes. Tenho
consciência, tendo muito pouco tempo, do caráter um pouco abrupto, peremptório
e talvez aparentemente contraditório do que acabo de dizer. Entretanto, acho
que dei indicações suficientes sobre o que pode ser um método que vise
instaurar a dialética entre o global e o particular, o único que pode permitir
conciliar a visão global e sinóptica que a construção da estrutura de conjunto
exige com a visão idiográfica, aproximada. O antagonismo entre a grande visão
macrossociológica e a visão microscópica de uma microssociologia, ou entre a
construção das estruturas objetivas e a descrição das representações subjetivas
dos agentes, de suas construções práticas, desaparece, bem como todas as
oposições em forma de “par epistemológico” (entre teoria e empiria, etc.), a
partir do momento em que se tenha conseguido — o que me parece ser a arte por
excelência do pesquisador — investir um problema teórico de grande alcance num
objeto empírico bem-construído (por referência ao espaço global no qual está
situado) e controlável com os meios disponíveis, isto é, eventualmente, por um
pesquisador isolado, sem apoio financeiro, reduzido apenas à sua própria força
de trabalho.
Mas preciso
corrigir a impressão de realismo objetivista que pode dar minha referência a um
“quadro estrutural” concebido como preliminar à análise empírica. Eu sempre
digo que as estruturas não são outra coisa senão o produto objetivado das lutas
históricas tal como se pode apreendê-lo num dado momento do tempo. E o universo
das práticas esportivas que a pesquisa estatística fotografa em certo momento
não é senão a resultante da relação entre uma oferta, produzida por toda a
história anterior, isto é, um conjunto de “modelos”, de práticas (regras,
equipamentos, instituições especializadas), e uma procura, inscrita nas
disposições. A própria oferta tal como se apresenta num dado momento, sob a
forma de um conjunto de esportes passíveis de serem praticados (ou vistos), já
é produto de uma longa série de relações entre modelos de práticas e
dis-posições para a prática. Por exemplo, como bem mostrou Christian Pociello,
o programa de práticas corporais que a palavra “rúgbi” designa não é o mesmo —
ainda que, em sua definição formal, técnica, tenha permanecido idêntico, com
algumas poucas mudanças de regras — nos anos 30, em 1950 e em 1980. Ele é
marcado, na objetividade e nas representações, pelas apropriações de que foi
objeto e pelas especificações (por exemplo, a “violência”) que recebeu na
“realização” concreta operada pelos agentes dotados de disposições socialmente
constituídas de uma forma particular (por exemplo, nos anos 30, os estudantes
do PUC e do SBUC, ou de Oxford e Cambridge, e, nos anos 80, os mineiros galeses
e os agricultores, os pequenos comerciantes ou os funcionários de Romans, de
Toulon ou de Béziers). Esse efeito de apropriação social faz com que, a todo
momento, cada uma das “reali-dades” oferecidas sob o nome de esporte seja
marcada, na objetividade, por um conjunto de propriedades que não estão
inscritas na definição puramente técnica, que podem até ser oficialmente
excluídas dela, e que orientam as práticas e as escolhas (entre outras coisas,
dando um fundamento objetivo aos juízos do tipo “isso é coisa de pequeno
burguês” ou “coisa de intelectual”, etc.). Assim, a distribuição diferencial
das práticas esportivas resulta do estabelecimento de uma relação entre dois
espaços homólogos, um espaço das práticas possíveis, a oferta, e um espaço das
disposições a serem praticadas, a procura: do lado da oferta, temos um espaço
dos esportes entendidos como programas de práticas esportivas, que são
caracterizadas, em primeiro lugar, em suas propriedades intrínsecas, técnicas
(isto é, em particular, as possibilidades e sobretudo as impossibilidades que
eles oferecem à expressão das diferentes disposições corporais), e, em segundo
lugar, nas suas propriedades relacionais, estruturais, tal como se definem em
relação ao conjunto dos outros programas de práticas esportivas simultaneamente
oferecidas, mas que só se realiza plenamente num dado momento, recebendo as
propriedades de apropriação que sua associação dominante lhes confere, tanto na
realidade como na representação, através dos participantes modais, em relação a
uma posição no espaço social; por outro lado, da parte da procura, temos um
espaço das disposições esportivas que, enquanto dimensão do sistema de disposições
(do habitus), estão relacionalmente, estruturalmente, caracterizadas, como as
posições às quais elas correspondem, e que num dado momento são definidas na
particularidade de sua especificação pelo estado atual da oferta (que contribui
para produzir a necessidade, apresentando-lhe a possibilidade efetiva de sua
realização) e também pela realização da oferta no estado anterior. Acho que
este é um modelo bem geral que rege as mais diferentes práticas de consumo.
Desse modo, vimos que Vivaldi ganhou, num intervalo de vinte anos, sentidos
sociais totalmente opostos, e passou do estado de “redescoberta” musicológica
ao estatuto de música de fundo no supermercado Monoprix. Ainda que seguramente
um esporte, uma obra musical ou um texto filosófico definam, devido às suas
propriedades intrínsecas, os limites dos usos sociais que podem ser feitos
deles, eles se prestam a uma diversidade de utilizações e são marcados a cada
momento pelo uso domi-nante que é feito deles. Um autor filosófico, Spinoza ou
Kant, por exemplo, na verdade daquilo que se propõe a percepção, nunca se reduz
à verdade intrínseca da obra, e, em sua verdade social, ele engloba as leituras
mais importantes que fazem dela os kantianos e os spinozistas do momento, eles
próprios definidos não só por sua relação objetiva ou subjetiva com os
kantianos e com os spinozistas do período anterior e suas leituras, mas também
com os promotores ou com os defensores de outras filosofias. É contra esse
complexo indivisível que é o Kant apropriado por kantianos que projetam em
Kant, e não apenas pela leitura que fazem dele, suas propriedades sociais, qué
Heidegger reage quando opõe um Kant metafísico, quase existencialista (por
exemplo, com o tema da finitude), ao Kant cosmopolita, universalista,
racionalista, progressista dos neokantianos. Vocês devem estar se perguntando
aonde quero chegar. Na verdade, assim como o sentido social de uma óbra de
filosofia pode se inverter dessa maneira (e a maior parte das obras, Descartes,
Kant, ou mesmo Marx, estão sempre mudando de sentido, cada geração de
comentadores vem destruir a leitura da geração precedente), do mesmo modo, uma
prática esportiva que, em sua definição técnica, “intrínseca”, sempre apresenta
uma grande elasticidade, logo, oferece uma grande disponibilidade para usos
totalmente diferentes, até opostos; também pode mudar de sentido. Mais
exatamente, o sentido dominante, isto é, o sentido social que lhes é atribuído
por seus usuários sociais dominantes (numérica ou socialmente) pode mudar: com
efeito, é freqüente que no mesmo momento, e isso é válido também para uma obra
filosófica, um esporte receba dois sentidos muito diferentes, e que o programa
objetivado de prática esportiva designado por um termo como corrida a pé ou
natação, ou mesmo tênis, rúgbi, luta, judô, seja um alvo de lutas — pelo
próprio fato de sua polissemia objetiva, de sua indeterminação parcial, que o
torna disponível para vários usos — entre pessoas que se opõem quanto ao uso
verdadeiro, do bom uso, da boa maneira de. exercitar a prática proposta pelo
programa objetivado, de prática considerado (ou, no caso de uma obra filosófica
ou musical, pelo programa objetivado de leitura ou de execução). Num dado
momento, um esporte é um pouco como uma obra musical: uma partitura (uma regra
do jogo, etc.), mas também interpretações concorrentes (e todo um conjunto de
interpretações do passado sedimentado); e é com tudo isso que cada novo
intérprete se defronta, mais inconsciente do que conscientemente, quando propõe
“sua” interpretação. Seria preciso analisar, nessa lógica, os “retornos” (a
Kant, aos instrumentos de época, ao boxe francês, etc.). Eu dizia que o sentido
dominante pode mudar. De fato, principalmente porque ele se define por oposição
a esse sentido dominante, um novo tipo de prática esportiva pode ser construído
com elementos do programa dominante de prática esportiva que estavam em estado
virtual, implícito ou recalcado (por exemplo, toda a violência que estava
excluída de um esporte por imposição do fair play). O princípio dessas
reviravoltas, que apenas a lógica da distinção não basta para explicar,
certamente reside na reação dos novatos, e das disposições constituídas
socialmente que eles introduzem no campo, contra o, complexo socialmente
marcado que um esporte constitui, ou uma obra filosófica, como programa objetivado
de prática, mas socialmente realizado, encarnado em agentes socialmente
marcados, logo, marcados pelas características sociais desses agentes, pelo
efeito de apropriação. Se, para a visão sincrônica, tal ou tal desses
programas, aquele programa que um nome de esporte designa (luta, equitação,
tênis) ou um nome próprio de filósofo ou compositor, ou um nome de gênero,
ópera, opereta, teatro de bulevar, ou mesmo um estilo, realismo, simbolismo,
etc., parece diretamente ligado às disposições inscritas nos ocupantes de uma
determinada posição social (é, por exemplo, o vínculo entre a luta ou o rúg- bi
e os dominantes), uma visão diacrônica pode levar a uma representação
diferente, como se o mesmo objeto oferecido pudesse ser apropriado por agentes
dotados de disposições muito diversas, em suma, como se qualquer um pudesse se
apropriar de qualquer programa e qualquer programa pudesse ser apropriado por
qualquer um. (Esse saudável “relativismo” pelo menos tem a virtude de prevenir
contra a tendência, recorrente em história da arte, de estabelecer um vínculo
direto entre as posições sociais e as tomadas de posição estéticas, entre o
“realismo”, por exemplo, e os dominados, esquecendo que as mesmas disposições
poderão, por referência a espaços de oferta diferentes, exprimir-se em tomadas
de posição diferentes.) Na verdade, a elasticidade semântica nunca é infinita
(basta pensar no golfe e na luta), e sobretudo, em cada momento, as escolhas
entre as diferentes possibilidades oferecidas nunca se distribuem ao acaso,
ainda que, quando o espaço dos possíveis é muito restrito (por exemplo, o jovem
Marx contra o Marx da maturidade), a relação entre as dis-posições e as tomadas
de posição seja muito obscura, pelo fato de as disposições, que podem projetar
diretamente sua estrutu-ra de exigências em universos mais abertos, menos
codificados, serem obrigadas, nesse caso, a se limitar a escolhas negativas ou
ao menos ruim. Acho possível dizer que as disposições associadas às diferentes
posições no espaço social, e em parti-cular as disposições estruturalmente
opostas ligadas às dis-posições opostas nesse espaço, sempre encontram um meio
de se exprimir, mas, às vezes, sob a forma irreconhecível das oposições
específicas, ínfimas e imperceptíveis se não tivermos as categorias de
percepção adequadas, que organizam um campo determinado num dado momento. Não
há nada que impeça pensar que as mesmas disposições que levaram Heidegger a uma
forma de pensamento “revolucionário conser-vador” teriam podido, em referência
a outro espaço de oferta filosófica, levá-lo até o jovem Marx; ou que a mesma
pessoa (mas ela não seria a mesma) que vê hoje no aikidô uma maneira de escapar
do judô, naquilo que ele tem de objetivamente limitado, competitivo,
pequeno-burguês — é evidente que estou falando do judô socialmente apropriado
—, teria exigido, há trinta anos, mais ou menos a mesma coisa do judô.
Eu gostaria
ainda de lembrar, mesmo superficialmente, todo o programa de pesquisas que está
implicado na idéia de que um campo de profissionais da produção de bens e
serviços esportivos está se constituindo progressivamente (entre os quais, por
exemplo, os espetáculos esportivos), no interior do qual se desenvolvem
interesses específicos, ligados à concorrência, relações de força específica,
etc. Eu me contentarei em mencionar, entre outras, uma conseqüência da
constituição desse campo relativamente autônomo, a saber, o contínuo aumento da
ruptura entre profissionais e amadores, que vai pari passu com o desenvolvimento
de um esporte-espetáculo totalmente separado do esporte comum. É notável que se
observe um processo semelhante em outras áreas, particularmente na dança. Nos
dois casos, a constituição progressiva de um campo relativamente autônomo
reservado a profissionais é acompanhada de uma despossessão dos leigos, pouco a
pouco reduzidos ao papel de espectadores: por oposição à dança camponesa, em
geral associada a funções rituais, a dança cortesã, que se torna espetáculo,
supõe conhecimentos específicos (é preciso conhecer o compasso e os passos),
portanto, mestres de dança são levados a enfatizar a virtuosidade técnica e a
operar um trabalho de explicitação e de codificação; a partir do século XIX,
aparecem dançarinos profissionais, que se apresentam nos salões diante de
pessoas que praticam e ainda podem apreciar como conhecedores; depois, por fim,
dá-se a ruptura total entre os dançarinos estrelas e espectadores sem prática
reduzidos a uma compreensão passiva. A partir de então, a evolução da prática
profissional depende cada vez mais da lógica interna do campo de profissionais,
sendo os não-profissionais relegados à categoria de público cada vez menos
capaz da compreensão dada pela prática. Em matéria de esporte, estamos freqüentemente,
na melhor das hipóteses, no estágio da dança do século X3X, com profissionais
que se apresentam para amadores que ainda praticam ou praticaram; mas a difusão
favorecida pela televisão introduz cada vez mais espectadores desprovidos de
qualquer competência prática e atentos a aspectos extrínsecos da prática, como
o resultado, a vitória. . O que acarreta efeitos, por intermédio da sanção
(financeira ou outra) dada pelo público, no próprio funcionamento do campo de
profissionais (como a busca de vitória a qualquer preço e, com ela, entre
outras coisas, o aumento da violência).
Termino por
aqui, já que o tempo que me foi concedido está praticamente esgotado. Indico o
último ponto em alguns segundos. Falei inicialmente dos efeitos da divisão do
trabalho entre os teóricos e os práticos no interior do campo científico. Penso
que o esporte é, com a dança, um dos terrenos onde se coloca com acuidade
máxima o problema das relações entre a teoria e a prática, e também entre a
linguagem e o corpo. Certos professores de educação física tentaram analisar o
que é, por exemplo, para um treinador ou para um professor de música comandar o
corpo. Como ensinar a alguém, isto é, a seu corpo, a corrigir seu gesto? Os
problemas colocados pelo ensino de uma prática corporal me parecem encerrar um
Conjunto de questões teóricas de importância capital, na medida em que as
ciências sociais se esforçam por fazer a teoria de condutas, que se produzem,
em sua grande maioria, aquém da consciência, que se aprendem, pode-se dizer, por
uma comunicação silen-ciosa, prática, corpo a corpo. E a pedagogia esportiva
talvez seja o terreno por excelência para colocar o problema que em geral é
exposto no terreno da política: o problema da tomada de consciência. Há um modo
de compreensão totalmente particular, em geral esquecido nas teorias da
inteligência, e que consiste em compreender com o corpo. Há uma infinidade de
coisas que compreendemos somente com nosso corpo, aquém da consciência, sem ter
palavras para exprimi-lo. O silêncio dos esportistas de que falei no início
deve-se em parte, quando não se é profissional da explicitação, ao fato de
haver coisas que não se sabe dizer, e as práticas esportivas são essas práticas
nas quais a compreensão é corporal. Em geral, só se pode dizer: “Olhe, faça
como eu”. Nota-se com freqüência que os livros escritos por grandes dançarinos
não transmitem quase nada daquilo que fez o “gênio” de seus autores. E Edwin
Denby, pensando em Théophile Gautier ou em Mallarmé, dizia que as observações
mais pertinentes sobre a dança partem menos dos dançarinos, ou mesmo dos
críticos, do que dos amadores esclarecidos. O que se compreende se sabemos que
a dança é a única das artes eruditas cuja transmissão — entre dançarinos e
público, mas também entre mestre e discípulo —é inteiramente oral e visual, ou
melhor, mimética. Isso em razão da ausência de qualquer objetivação numa
escritura adequada (a ausência do equivalente da partitura, que permite
distinguir claramente entre partitura e execução, leva a identificar a obra à
performance, a dança ao dançarino). Poderíamos, nessa perspectiva, tentar
estudar o que foram os efeitos, tanto na dança como no esporte, da introdução
da filmadora. Uma das questões colocadas é saber se é preciso passar pelas
palavras para ensinar determinadas coisas ao corpo, se, quando se fala ao corpo
com palavras, são as palavras precisas teoricamente, cientificamente, aquelas
que fazem o corpo compreender melhor ou se, às vezes, palavras que não têm nada
a ver com a descrição adequada do que se quer transmitir não são mais bem
compreendidas pelo corpo. Refletindo sobre essa compreensão do corpo, talvez
fosse possível contribuir para uma teoria da crença. Vocês vão pensar que
procedo com botas de sete léguas. Penso que há uma ligação entre o corpo e o
que em francês nós chamamos de esprit de corps. Se a maioria das organizações,
seja a Igreja, o Exército, os partidos, as indústrias, etc., dão tanto espaço
às disciplinas corporais, é porque, em grande parte, a obediência é a crença, e
porque a crença é o que o corpo admite mesmo quando o espírito diz não
(poderíamos, nessa lógica, refletir sobre a noção de disciplina). Talvez seja
refletindo sobre o que o esporte tem de mais específico, isto é, a manipulação
regrada do corpo, sobre o fato de o esporte, como todas as disciplinas em todas
as instituições totais ou totalitárias, os conventos, as prisões, os asilos, os
partidos, etc., ser uma maneira de obter do corpo uma adesão que o espírito
poderia recusar, que se conseguiria compreender melhor o uso que a maior parte
dos regimes autoritários faz do esporte. A disciplina corporal é o instrumento
por excelência de toda espécie de “domesticação”: sabe-se o uso que a pedagogia
dos jesuítas fazia da dança. Seria preciso analisar a relação dialética que une
as posturas corporais e os sentimentos correspondentes: adotar certas posições
ou certas posturas é, sabe-se desde Pascal, induzir ou reforçar os sentimentos
que elas exprimem. O gesto, segundo o paradoxo do comediante ou do dançarino,
reforça o sentimento que reforça o gesto. Assim se explica o lugar destinado
por todos os regimes de caráter totalitário às práticas corporais coletivas
que, simbolizando o social, contribuem para somatizá- lo e que, pela mimesis
corporal e coletiva da orquestração social, visam reforçar essa orquestração. A
História do soldado lembra a velha tradição popular: fazer alguém dançar
significa possuí-lo. Os “exercícios espirituais” são exercícios corporais, e
inúmeros treinamentos modernos são uma forma de ascese no século.
Há uma
contradição, que sinto muito fortemente, entre o que quero dizer e as condições
nas quais digo isso. Teria sido preciso que eu tomasse um exemplo absolutamente
preciso e o aprofundasse; ora, devido à aceleração imposta a meu discurso pelas
pressões do horário, vocês podem ter a impressão de que propus grandes
perspectivas teóricas quando minha intenção era totalmente inversa...
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