Ética no Desporto
22:45 - 06-10-2013
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
Segundo
Anthony Giddens, no seu livro As Consequências da Modernidade, o que
caracteriza o nosso tempo é a sua descontinuidade, em relação às épocas
anteriores. As transformações na tecnociência, na filosofia, nos modos
de vida, nas mentalidades; a globalização do economicismo neo-liberal,
bem expressa numa alta competição sem freios; o ciberespaço, como novo
espaço do saber; confundir felicidade com a posse exclusiva de bens
materiais: não deixam a este respeito um rasto de dúvida. No entanto,
segundo Rawls, uma das “experiências fundamentais” da modernidade é a
existência do fact of pluralism, ou seja, a existência de uma
incomensurável pluralidade de valores, que reduz a cinzas qualquer
unicidade normativa. Por isso, Habermas faz resultar a moral das
condições e pressupostos da deliberação democrática, como se nela
ressaltassem, límpidas, a dimensão moral, a ética e a pragmática, quero
eu dizer: a complementaridade entre o direito e a moral.
Em
Habermas, substitui-se o “imperativo categórico” por formas de
comunicação e argumentação. E assim, melhor do que a minha proclamação
de leis universais, devo antes submetê-las ao juízo crítico dos demais,
para diálogo, discussão e aprovação final. Mas uma pergunta se levanta,
imediatamente: e quem detém a palavra e nos dá garantias do bom uso da
palavra? A realidade deve considerar-se sob a óptica de quatro níveis ou
ordens distintos: a ordem das finalidades, a ordem dos comportamentos, a
ordem jurídico-política e a ordem tecnocientífica.
A
competência tecnocientífica é a mais visível, embora as diferenças
culturais e linguísticas. Nem um idealismo exaltante ou os preconceitos
sentimentais escondem a falta de rigor, o charlatanismo, o
desconhecimento dos temas em questão. Da ordem
jurídico-político-organizacional ressalta a organização que dá força e
sentido a quem a representa. A qualidade do estrutural reflecte-se na
qualidade das condutas individuais. Mas o comportamento também depende
do “homem de bem” que se é.
A lição diária dos factos ensina
que, sem um rijo arcaboiço ético, há objectivos inadiáveis que não se
alcançam. É preciso distinguir o bem do mal, para que o desejo do “bem
comum” possa emergir de tudo o que se faz. Na ordem das finalidades,
deve luzir, de facto, o “bem comum”, preparado e materializado pelo
homem ao serviço do homem, para que todos os homens possam ser actores
da sua história e da própria História.
Uma análise ontológica,
mesmo que episódica, da prática desportiva diz-nos que o ser humano é um
ser-de-relação. Ou em equipa, ou individualmente, o desportista
normalmemte entra em competição, quero eu dizer: precisa do seu
semelhante. E, se dele precisa, há-de respeitá-lo, ou seja, não pode
fazer dele um instrumento de qualquer um dos seus objectivos. Há, aqui,
um jogo de co-responsabilidade: no desporto, também pelos adversários (e
não só pelos companheiros da equipa) eu sou responsável. E esta
responsabilidade não resulta de uma escolha, de uma preferência
individual, porque sem ela não há desporto. Daqui se infere sem
dificuldade que, no desporto (como em Levinas), a ética é a filosofia
primeira. E, a este ângulo de visão, o praticante exemplar surge como
alguém onde brilham excepcionais qualidades físico-motoras e
psicológicas, específicas do desporto de alto nível, e simultaneamente
admiráveis qualidades éticas. A vontade de vencer é inerente à prática
desportiva, mas o praticante, como ser-de-relação, há-de saber vencer e
perder, que o mesmo é dizer: há-de saber respeitar e respeitar-se, como
vencedor e como vencido, dado que a motricidade humana tem como
objectivo primeiro o desenvolvimento de todos e de cada um dos seres
humanos. O aprumo e a lealdade, no desporto, não podem significar, hoje,
ausência de competição, mas recusa à instrumentalização, ao serviço da
competição sórdida do economicismo triunfante, que alimenta, sem mérito
nem vergonha, o “bellum omnium contra omnes” (guerra de todos contra
todos). A competição, no desporto, é uma forma de diálogo fraterno,
deverá ser, por isso, uma expressão corporal do primado da dimensão
ético-política sobre a dimensão economicista. Assim, nasce a confiança
mútua, que é indispensável à competição desportiva. “Não faças aos
outros o que não queres que te façam a ti” poderá ser a regra de ouro a
presidir ao comportamento dos atletas, dos técnicos (sem esquecer os
técnicos de saúde) e dos dirigentes.
Mas há dois perigos que
rondam o sistema desportivo: a barbárie e o angelismo. A barbárie,
quando os atletas deixam de ser pessoas/cidadãos e passam a ser
governados pelo “despotismo iluminado” de dirigentes corruptos ou mal
informados. O respeito pelos atletas não pode provir tão-só de “ordens
superiores”, ou da ordem jurídica estabelecida, mas de um imperativo
moral. No desporto, há o primado absoluto da pessoa sobre a lei. O
angelismo acontece, quando se pensa que uma lei, um manifesto, um
discurso, as conclusões de um congresso resolvem, por si sós, uma
situação concreta. O verdadeiro motor da acção, da motricidade humana,
reside na consciência reflexiva e na vontade livre e responsável das
pessoas (neste caso, dos praticantes). Não faltam tratados, congressos,
publicações e todo um galante florilégio de conclusões sobre a ética no
desporto e... a corrupção e a violência permanecem. Porquê? Entre
outros motivos, porque não se preparam, pedagogicamente, os alunos e os
atletas a serem agentes morais, para além de praticantes de admiráveis
qualidades físicas e técnicas. Enganam-se os que pensam que os atletas
são singelos títeres, nas mãos dos dirigentes e dos técnicos, ou das
leis sem espírito (lembram-se do Espírito das Leis, de Montesquieu?). O
Homo Sapiens-Sapiens é um ser que sabe que sabe e sente, por isso, a
necessidade imperiosa de criticar, isto é, de saber, em profundidade,
quem é, onde está e para onde vai. Posto isto, podemos adiantar que não é
o desporto o novo ópio do povo, o ópio do povo é o desporto
institucionalizado pelo neoliberalismo dominante, que demasiadas vezes
reduz as pessoas a coisas e os sujeitos a objectos. Já há mais de cem
anos, Jaime Cortesão alertava, em A Águia (Outubro de 1912) que “não é o
regime, nem a agricultura, nem a indústria, nem as finanças que
verdadeiramente estão em crise – o que em Portugal, há alguns séculos,
está em crise é o Português”. Enfim, há que preparar também as pessoas
para que as estruturas se transformem.
Posto isto, propõe-se:
1.Que
o desporto escolar inclua, no conteúdo das suas matérias, não a
gramática epistemológica das ciências empírico-formais, mas a das
ciências hermenêutico-humanas, onde toda a objectualização é ilegítima.
E, por isso, onde uma cultura anti-dualista e anti-colonialista e
anti-imperialista seja essencial e fundante.
2.Que o ensino
universitário do desporto assuma, sem subterfúgios, um paradigma
decorrente das ciências hermenêutico-humanas e onde o agente do
desporto, como ser-de-relação, se estude como factor de desenvolvimento
da pessoa, do grupo, da sociedade.
3.Que a teoria e metodologia
do treino não esqueça nunca os aspectos éticos e políticos da prática
desportiva. Sem ética, o espectáculo desportivo pode transformar-se num
espaço de
violência e de corrupção, dada a alta competição em que decorre.
Quando
o treinador Jorge Jesus sustenta que “o fair-play é uma treta”, acentua
que a ética movimenta-se com dificuldade num desporto que reproduz e
multiplica as taras do economicismo triunfante.
4.Que se
reconheça, no atleta, o sujeito ou a pessoa, com um valor
incomensurável, em relação ao valor de todos os campeonatos e taças das
federações internacionais ou dos Jogos Olímpicos. É o praticante a
origem e o fundamento de toda a significação do Desporto. A expressão
“jogo de vida ou de morte” deverá erradicar-se do vocabulário
desportivo. A morte do ser humano é a morte do próprio Desporto.
E.
Levinas, no seu «Autrement qu’être ou au-delà de l’essence», acolhe com
bons olhos a desconstrução do humanismo actual, pois este, ao rejeitar o
Absoluto, “não é suficientemente humano”. Direi o mesmo do desporto
actual que, ao articular-se absolutamente fora do sujeito, rouba ao
praticante o estatuto de “primeira pessoa”, para transformá-lo em mera
unidade intercambiável. A própria consciência reflexa não é mais, para
os novos humanistas, do que o resultado do processo de interiorização de
uma ordem que lhe é totalmente exterior. Só que o novo humanismo, ao
diluir o ser humano num mundo onde a globalização neoliberal impera, põe
o Desporto em questão. Este é um tema que nunca vi tratado pelas
instâncias internacionais que se ocupam desta problemática. Falam tanto
de ética desportiva, sem darem conta se ela é possível com as estruturas
onde o próprio desporto assenta. No entanto, porque a transcendência (a
superação) é o sentido do desporto e da própria vida; porque a pessoa
humana não nasce feita, mas apta a desenvolver e a desenvolver-se;
porque a educação desportiva tem na ética um dos seus fundamentos –
propõe-se, por fim, ao Ministério da Educaçãlo e às Universidades que a
Ética seja uma disciplina das licenciaturas em Desporto e que, no
desporto escolar, a motricidade seja um movimento de acordo com valores –
aqueles valores sem os quais impossível se torna viver humanamente. No
espaço educativo, é pouco, muito pouco, ajudar ao nascimento de “bestas
esplêndidas”. O Homem é bem mais do que isto...